Um mestre espiritual de tempos recentes, Anthony de Mello, um jesuíta indiano dotado de profunda sabedoria da vida, culto, aberto e sensível à realidade das pessoas e do seu viver, escreveu, num dos seus livros, que doença grave que por aí grassa e pode atingir a todos, é a que ele chama, com a sua conhecida e habitual perspicácia e ironia, “camadas de gordura”.
Não se refere, como é óbvio, à tão falada e grave obesidade de crianças, jovens e adultos, que vem merecendo grande atenção e cuidados pelos muitos perigos que encerra e males que provoca.
Diz o mestre que, tal como acontece com o corpo, também a mente humana, pelas muitas aderências inúteis e graves, se pode tornar pesada e lenta, incapaz de pensar, observar, procurar e descobrir… E convida a olhar à nossa volta para que vejamos que a maioria das mentes estão entorpecidas e adormecidas, envolvidas por camadas de gorduras morais e psíquicas, desejando não ser molestadas nem sacudidas na sua modorra. E, como mestre sábio, ensina a ver quais são essas camadas, bem como os meios a utilizar para as dissipar e vencer, e adquirir, assim, a normalidade de uma mente que pensa, sente, vê e quer.
Aí estão as camadas perigosas: são maneiras de viver, por força de determinadas condições religiosas, politicas, culturais, que foram criando barreiras interiores, emparedando a mente e impedindo novos horizontes de vida; são ideias, acerca de pessoas e de coisas, que se foram sedimentando e tornando fixas, e se traduzem em rótulos que não mais se tiram e condicionam, por fim, conceitos e relações, empobrecendo-os e estratificando-os; são hábitos, não meramente mecânicos, que estes até nos ajudam na vida, mas hábitos que invadiram o campo do amor e da visão, impedem a interioridade e a contemplação, nos tornam insensíveis ao maravilhoso, ao que chega de novo carregado de bem e de beleza, nos fazem perder a criatividade e a capacidade de inovar e de apreciar o diferente das pessoas e das coisas; são apegos e medos que não nos deixam em paz, geram aversões e tensões, fixações e repulsas, e empurram a mente para um processo doentio.
Vendo bem, a doença é real e vai sendo epidémica, enchendo a sociedade de gente emparedada e aprisionada.
Como sair disto? Primeiro, que a pessoa acomodada se reconheça presa e emparedada; contemple, serenamente, os muros que lhe tiram a liberdade, consciente de que eles, muito observados, cairão por fim; leve tempo a observar as pessoas e as coisas que a rodeiam e veja-as libertas; sinta, tranquilamente, como funciona a sua mente, pois dela brotam pensamentos, sensações e reacções, e contemple, depois, sem pressas, o que se passa consigo, concluindo se afinal está viva ou se nem sequer dá pelos seus pensamento e reacções…Então, está em condições de começar a desprender-se das “camadas de gorduras” e de perceber que tem de procurar rumo. Uma vida inconsciente, diz o mestre, não merece ser vivida. É mecânica, robótica, mais sonho e morte que vida humana.
Uma nova visão do mundo e das pessoas aparece, como a daquele que se sujeitou a uma cirurgia às cataratas.
Não escondo que se torna difícil a muita gente tanto o reconhecer a doença como o querer libertar-se dela. Mas também aí se verifica até que ponto a vida tem ainda sentido ou a resignação cómoda já a destruiu.
António Marcelino