domingo, 5 de outubro de 2008

ATENAS CONTRA JERUSALÉM?

Já no fim, Hitler obrigou miúdos a avançar para a guerra. Foi assim que também Johann Baptist Metz entrou no horror. Uma manhã, ao regressar, depois de cumprir ordens num destacamento militar distante, encontrou os colegas todos mortos. Uma juventude roubada, à beira do abismo do absurdo! Aí está a razão por que, como o filósofo Adorno escreveu que, "depois de Auschwitz, já não é possível a poesia", também o teólogo Metz, no início do ano lectivo, reflectia com os estudantes que, se aquelas aulas não fossem ao encontro dos problemas dos homens e das mulheres e dos seus sofrimentos e das suas esperanças, não só não valiam a pena como eram uma injúria. Na Alemanha, celebra-se agora o 80.º aniversário do seu nascimento e muitos chamam a atenção para a importância de uma teologia que, no quadro de uma "nova teologia política", marcou indelevelmente o pensamento do século XX. Th. Assheuer acaba de se lhe referir no influente Die Zeit como "teólogo fascinante" e chamando a atenção para o que constituiu a sua provocação à Igreja católica: "Atenas contra Jerusalém." Porque é que a Igreja está mais centrada na redenção dos pecadores do que na justiça com os que sofrem inocentemente? Porque dá mais facilmente as mãos aos criminosos do que às vítimas? Porque avança triunfalmente, abençoando os poderosos? Segundo Metz, o cristianismo perdeu em radicalidade na sua mensagem, porque ficou preso do espírito helénico, esquecendo as suas raízes hebraicas e que no seu fundamento está "a memória perigosa" de um judeu, Jesus, crucificado. Enquanto o pensamento grego gira à volta dos modelos ideais "fora da" história, o pensamento bíblico recorda as vítimas "na" história. "Atenas" pergunta pelas ideias abstractas e a-históricas; "Jerusalém" pergunta pela sorte dos inocentes. Die Zeit lembra "o grito dos inocentes" e "a autoridade dos que sofrem", para sublinhar que, segundo Metz, a história do Ocidente seria menos cruel, se não tivesse reprimido a revolta bíblica contra a "normalidade" da dominação e da violência. A paixão por Deus verifica-se - tem a sua verdade - na compaixão pelas vítimas, como veio dizer a Valadares, há três anos, quando o convidei para o Congresso sobre Deus no Século XXI e o Futuro do Cristianismo. E só a compaixão funda perspectivas de paz. Um "exemplo desconfortável": "Só quando israelitas e palestinianos reconhecerem reciprocamente a sua história de sofrimento, chegará a paz ao Médio Oriente." J. B. Metz reconheceu, desde jovem, em A Teologia do Mundo, traduzido para português, a base bíblica da secularização enquanto autonomia do mundo. O seu combate foi contra a privatização da fé e da teologia, como se o cristianismo, concretamente após o iluminismo, devesse remeter-se para privacidade e para o sentimento, sem consequências políticas. Fundou assim, em oposição à "teologia política" do politólogo Carl Schmitt, cuja concepção de pecado original legitimava o poder ditatorial, uma "nova teologia política", em confronto crítico com a sociedade e concebendo-se como um "saber prático", que se faz "praxis na história e na sociedade". Este projecto teológico articula-se à volta de três categorias fundamentais: memória, narração e solidariedade. O conteúdo da fé cristã determina-se como memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Esta memória é uma "memória perigosa", pois tem um poder mobilizador e transformador: põe em crise o presente, abre à esperança e apela à acção. Enquanto teologia narrativa, comunica experiências e desperta para novas experiências. Depois, a memória e a narração implicam a solidariedade, uma solidariedade "místico-política": mística, porque referida à história de Jesus; política, porque é praxis transformadora da história e da sociedade, tendo no horizonte a realização íntegra de todos os seres humanos. Percebe-se então que esta solidariedade tenha de ser bifronte: não olha apenas para diante, para o futuro; olha também para o passado, para a história do sofrimento, para os mortos, pois o seu compromisso é com todos: todos reconhecidos como "sujeitos diante de Deus". Anselmo Borges, no DN

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