No quarto centenário do nascimento do Padre António Vieira, presto homenagem ao missionário, ao orador, ao escritor, ao patriota, ao diplomata, ao perseguido pela Inquisição, ao defensor dos índios e dos negros, puxando a atenção para a actualidade pavorosa do seu sermão aos peixes. Sermão de invulgar coragem frente aos colonos do Brasil. Não tinha Cristo chamado aos pregadores o sal da terra? Ora, "o efeito do sal é impedir a corrupção".
É preciso ouvir as repreensões, que, se não servirem de "emenda", servirão ao menos de "confusão". E qual é a confusão? É que os peixes como os homens se comem uns aos outros. O escândalo é grande, mas a circunstância fá-lo maior. "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."
Quando Portugal é apontado como o país da União Europeia com maior desigualdade na repartição dos rendimentos e a corrupção campeia e os ricos se tornam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres e se anuncia uma conflitualidade social iminente, que diria o Padre António Vieira? Perguntaria: "Que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no mundo?" E responderia: "A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos." "Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe; porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e devoram."
Que diria o Padre António Vieira frente a uma Justiça que não funciona ou que funciona mal e na qual os mais fracos e pobres não podem confiar muito? "Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado e já está comido."
Com a subida dos preços alimentares, está aí mais fome. Evidentemente, para os pequenos. Há razões várias para a carência, mas uma delas é a especulação. Como é possível especular com o sangue dos pobres? "Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros. E de que modo os devoram e comem? Não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres é que para a carne há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses do ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos."
Frente a uma ASAE que "permite" que governantes fumem em aviões fretados, mas inutiliza comida a instituições de solidariedade social por incumprimento de regras meramente formais, que diria o Padre António Vieira? "Os maiores comem os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras." Os pequenos não têm nem fazem ofício "em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem".
Não é preciso ir muito longe para ver a perversa cobiça. "Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar? Vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer."