terça-feira, 15 de janeiro de 2008

32



É um gosto oriental que a Bíblia herdou: o gosto pela aritmética simbólica, a paixão pelo jogo de números, cifras e códigos. Por exemplo, o Evangelho de Mateus abre com uma “brincadeira” (chamemos assim a essa coisa muito séria) em torno ao número 14, que se repete três vezes. Como em hebraico os algarismos eram expressos por letras, Mateus, mesmo escrevendo em grego, sabe que os seus leitores decifrarão que o 14 corresponde ao nome David (4+6+4, se tomarmos apenas as consoantes). O evangelista quer enaltecer Jesus atribuindo-lhe três vezes a realeza de David... Para não falar do Apocali-pse que faz desta linguagem dos números uma autêntica gramática para a sua empenhada teologia da história e da esperança...
As nossas sociedades contemporâneas lidam massivamente com números, mas sem a aura simbólica de um tempo. A sua função tornou-se sobretudo utilitária, estatística. Cada um de nós tem uma série de números, engrossa gráficos e percentagens. Neste labirinto quotidiano, os números parecem ter perdido a carga profética que tinham. Quantificam a realidade, e basta. Esquecemo-nos que o barro precisa do sopro vital, que a superfície respira em profundidades que não se vêem, que a quantidade se torna um acumular inútil se não nos encaminha para a qualidade do ser. Os números sucedem-se, em velocidade, no rodapé dos dias. Que significam verdadeiramente? Que pedem de nós?
Disto me recordo, lendo um texto de um especialista em questões de desenvolvimento acerca do número 32. Calcula-se que o bilião de pessoas que vive nos chamados Países do “primeiro mundo” tenha uma taxa relativa de consumo per capita de 32, enquanto que a maior parte dos outros 5,5 biliões de habitantes do planeta viva com uma mísera taxa que ronda quase sempre o 1. Dito brutalmente: o número 32 expressa neste momento a diferença de estilos de vida e de possibilidades entre o mundo desenvolvido e abastado, e o resto da humanidade. No cristianismo das origens os números eram interpretados simbolicamente como desafios concretos. E nós agora?

José Tolentino Mendonça

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