A TITA
Estar no quintal, em dias de sol ou de chuva, é um dos prazeres que cultivo, como quem cultiva uma flor para desabrochar na Primavera. Olhar as árvores na hibernação, ver as plantas que nascem sem que alguém as tenha semeado, cheirar o verde ora viçoso ora mortiço da vegetação espontânea, experimentar o prazer de deitar a semente à terra e de ver as novidades, mais tarde, ferirem a crosta areenta e estrumada, tudo isto me encanta.
Numa dessas tardes em que a contemplação me deixava voar ao sabor da maré que os ventos envolviam, a Tita surgiu apressada, como quem deseja chegar o mais depressa possível à meta que o seu instinto alimenta desde que nasceu. Passa por mim ostentando uma alegria inusitada e corre, corre, sem aparente explicação. Depois cheira tudo, em busca não sei de quê. Dou comigo a pensar que isso já nasceu com ela. Chama o companheiro Tótti, grita mesmo por ele, em jeito de quem quer alguém com quem possa partilhar a alegria de uma liberdade conquistada. Tótti dá-lhe o gosto e corre também, mas a Tita, logo depois, volta ao seu prazer de procurar.
Todos os dias faz isso sem desânimo. Investiga os recantos, escava no chão e tenta arrastar velhos troncos carcomidos pelo tempo. Não há pedra, por mais pesada que seja, que lhe resista. Cheira, com faro apurado, toupeiras e ratos do campo, sobressalta-se quando vê passar, à cata de sementes ou de um pingo de água, a passarada. Aqui perde a cabeça e agita-se. Ora se desloca rastejando por debaixo das árvores, ora se lança em louca correria na ânsia de apanhar uma rola mais pachorrenta, uma pomba mais distraída, um melro com cara de esperto. Não é por fome que a Tita se entretém assim todas as tardes no meu quintal.
Come bem às refeições, e fora delas, e não mostra, por isso, carências alimentares. É o instinto de caçadora que a obriga a fugir da monotonia de um ser normal. O instinto que herdou dos seus progenitores e que a natureza vai alimentando. Tudo o que mexe a faz olhar atenta. E a maioria das vezes não descansa enquanto não faz seu o que a provocou.
Quando vejo a Tita no seu labor diário, em liberdade feliz não muito comum, fico a pensar na sua história de vida, já com alguns anos, bem registada na minha memória e partilhada por toda a família. A Tita é a rainha de que todos se lembram durante o dia. Condiciona cada um às suas exigências, aos seus desejos, à sua vontade de brincar, de correr sem mostrar cansaço, de buscar algo nem sempre fácil de adivinhar.
Espera, pacientemente, a chegada a casa de todos e a todos desafia, com saber e arte, para uma brincadeira qualquer. Sem enfado, como quem tem no âmago uma mola carregada de vitalidade. Mas na hora da sesta, se pressente que tudo à sua volta pára, então estende-se ao comprido no sofá grande e dorme tranquilamente. Lá para o fim da tarde, a vivacidade reaparece até à exaustão.
Quando alguém sai de casa fica triste. E quando é a sua mais-que-tudo [a Lita] que se ausenta, não resiste e chora. Grita mesmo ao portão que a separa da rua. E ali fica, triste e acabrunhada, com o desgosto de se sentir só ou de perder a razão de ser da sua felicidade. À chegada da sua amiga querida, volta a alegria e nada a faz parar. Atira-se a ela, tenta falar-lhe, dá pequenos soluços como quem deseja saber a causa da demora. Uns afagos, umas palavras amigas, uma corridinha e tudo volta à normalidade. Feliz por estar com a Lita, a pessoa que a adoptou há algum tempo.
A gratidão é um sentimento que está a cair em desuso. A Tita, contudo, não vai por aí. Quem lhe faz bem tem amiga para toda a vida. Foi o que aconteceu com ela. A Tita veio da Covilhã com uma família que não a sabia amar. Marido e esposa eram por natureza agrestes. Iam para o emprego, logo de manhã, e deixavam a Tita, ainda bebé, fechada numa varanda. Com frio ou com calor, a sua alegria e a sua vivacidade, já notórias, estavam presas. Comia depressa o que lhe deixavam e por ali ficava à espera da ternura que nunca chegava e de um gesto de amizade que nunca experimentou nem conheceu. Conheceu, isso sim, os pontapés dessa gente agressiva e sem piedade. Aos fins-de-semana tudo piorava. Enquanto o casal ia à terra, a Tita ali permanecia limitada a uns três metros quadrados. Comia, como sempre, a ração toda de uma só vez, bebia a pouca água que lhe deixavam. Quando a fome e a sede apertavam, no final de domingo, comia e bebia, qual náufrago esfomeado, as próprias fezes e a urina.
A tristeza apoderou-se da Tita e quando sentia o casal refugiava-se num recanto qualquer, com medo dos inexplicáveis castigos. A sua sina estava a tornar-se insustentável. E disso dava conta, com olhares carregados de mágoa, a quem ousava apreciar a sua desdita. Se alguém a pudesse ajudar a sair daquele cativeiro; se alguém a quisesse e soubesse amar de verdade e como gente, jamais esqueceria esse gesto. Toda a vida! Terá pensado e prometido a Tita em momento de mais tristeza. Num fim-de-semana alargado, numas férias da Páscoa, a Tita mais uma vez foi condenada a ficar prisioneira na varanda do segundo andar dum prédio com dezenas de moradores, em zona residencial da cidade. Com cinco dias de cativeiro, os seus gritos de dor, pelo abandono e pela fome, não tardaram, esgotadas que foram as provisões deixadas pelo casal. E não tardaram também os gestos de solidariedade de quem não gosta de ver o sofrimento seja de quem for. Alertada a polícia local, gerou-se um movimento de apoio à vítima de abandono. Protecção civil e bombeiros, apoiados por uma brigada da polícia vocacionada para situações como esta, montaram o esquema libertador. Escadas, roldana e cesta de resgate foram preparadas. A Tita não podia continuar a ser vítima de maus-tratos. As janelas dos prédios vizinhos encheram-se de gente curiosa e condoída. Transeuntes questionavam quem estava para saber do que se tratava. A Lita dava explicações, deixando transparecer o seu desgosto por haver gente sem sentimentos. E quando a Tita foi salva, os rostos dos que assistiram à cena iluminaram-se de alegria.
Com todos os cuidados, a Lita assumiu-a como adoptante, até se encontrar uma solução definitiva. Acarinhou-a, alimentou-a, ofereceu-lhe uma cama digna. Um dia e outro. E mais um dia e mais outro. A gratidão da Tita ia aumentando. Impossível a separação. Quando pressentiu isso, o instinto garantiu-lhe que tinha agora uma nova família que a amava. Uma família para ela amar até ao fim da sua vida.
Fernando Martins
Numa dessas tardes em que a contemplação me deixava voar ao sabor da maré que os ventos envolviam, a Tita surgiu apressada, como quem deseja chegar o mais depressa possível à meta que o seu instinto alimenta desde que nasceu. Passa por mim ostentando uma alegria inusitada e corre, corre, sem aparente explicação. Depois cheira tudo, em busca não sei de quê. Dou comigo a pensar que isso já nasceu com ela. Chama o companheiro Tótti, grita mesmo por ele, em jeito de quem quer alguém com quem possa partilhar a alegria de uma liberdade conquistada. Tótti dá-lhe o gosto e corre também, mas a Tita, logo depois, volta ao seu prazer de procurar.
Todos os dias faz isso sem desânimo. Investiga os recantos, escava no chão e tenta arrastar velhos troncos carcomidos pelo tempo. Não há pedra, por mais pesada que seja, que lhe resista. Cheira, com faro apurado, toupeiras e ratos do campo, sobressalta-se quando vê passar, à cata de sementes ou de um pingo de água, a passarada. Aqui perde a cabeça e agita-se. Ora se desloca rastejando por debaixo das árvores, ora se lança em louca correria na ânsia de apanhar uma rola mais pachorrenta, uma pomba mais distraída, um melro com cara de esperto. Não é por fome que a Tita se entretém assim todas as tardes no meu quintal.
Come bem às refeições, e fora delas, e não mostra, por isso, carências alimentares. É o instinto de caçadora que a obriga a fugir da monotonia de um ser normal. O instinto que herdou dos seus progenitores e que a natureza vai alimentando. Tudo o que mexe a faz olhar atenta. E a maioria das vezes não descansa enquanto não faz seu o que a provocou.
Quando vejo a Tita no seu labor diário, em liberdade feliz não muito comum, fico a pensar na sua história de vida, já com alguns anos, bem registada na minha memória e partilhada por toda a família. A Tita é a rainha de que todos se lembram durante o dia. Condiciona cada um às suas exigências, aos seus desejos, à sua vontade de brincar, de correr sem mostrar cansaço, de buscar algo nem sempre fácil de adivinhar.
Espera, pacientemente, a chegada a casa de todos e a todos desafia, com saber e arte, para uma brincadeira qualquer. Sem enfado, como quem tem no âmago uma mola carregada de vitalidade. Mas na hora da sesta, se pressente que tudo à sua volta pára, então estende-se ao comprido no sofá grande e dorme tranquilamente. Lá para o fim da tarde, a vivacidade reaparece até à exaustão.
Quando alguém sai de casa fica triste. E quando é a sua mais-que-tudo [a Lita] que se ausenta, não resiste e chora. Grita mesmo ao portão que a separa da rua. E ali fica, triste e acabrunhada, com o desgosto de se sentir só ou de perder a razão de ser da sua felicidade. À chegada da sua amiga querida, volta a alegria e nada a faz parar. Atira-se a ela, tenta falar-lhe, dá pequenos soluços como quem deseja saber a causa da demora. Uns afagos, umas palavras amigas, uma corridinha e tudo volta à normalidade. Feliz por estar com a Lita, a pessoa que a adoptou há algum tempo.
A gratidão é um sentimento que está a cair em desuso. A Tita, contudo, não vai por aí. Quem lhe faz bem tem amiga para toda a vida. Foi o que aconteceu com ela. A Tita veio da Covilhã com uma família que não a sabia amar. Marido e esposa eram por natureza agrestes. Iam para o emprego, logo de manhã, e deixavam a Tita, ainda bebé, fechada numa varanda. Com frio ou com calor, a sua alegria e a sua vivacidade, já notórias, estavam presas. Comia depressa o que lhe deixavam e por ali ficava à espera da ternura que nunca chegava e de um gesto de amizade que nunca experimentou nem conheceu. Conheceu, isso sim, os pontapés dessa gente agressiva e sem piedade. Aos fins-de-semana tudo piorava. Enquanto o casal ia à terra, a Tita ali permanecia limitada a uns três metros quadrados. Comia, como sempre, a ração toda de uma só vez, bebia a pouca água que lhe deixavam. Quando a fome e a sede apertavam, no final de domingo, comia e bebia, qual náufrago esfomeado, as próprias fezes e a urina.
A tristeza apoderou-se da Tita e quando sentia o casal refugiava-se num recanto qualquer, com medo dos inexplicáveis castigos. A sua sina estava a tornar-se insustentável. E disso dava conta, com olhares carregados de mágoa, a quem ousava apreciar a sua desdita. Se alguém a pudesse ajudar a sair daquele cativeiro; se alguém a quisesse e soubesse amar de verdade e como gente, jamais esqueceria esse gesto. Toda a vida! Terá pensado e prometido a Tita em momento de mais tristeza. Num fim-de-semana alargado, numas férias da Páscoa, a Tita mais uma vez foi condenada a ficar prisioneira na varanda do segundo andar dum prédio com dezenas de moradores, em zona residencial da cidade. Com cinco dias de cativeiro, os seus gritos de dor, pelo abandono e pela fome, não tardaram, esgotadas que foram as provisões deixadas pelo casal. E não tardaram também os gestos de solidariedade de quem não gosta de ver o sofrimento seja de quem for. Alertada a polícia local, gerou-se um movimento de apoio à vítima de abandono. Protecção civil e bombeiros, apoiados por uma brigada da polícia vocacionada para situações como esta, montaram o esquema libertador. Escadas, roldana e cesta de resgate foram preparadas. A Tita não podia continuar a ser vítima de maus-tratos. As janelas dos prédios vizinhos encheram-se de gente curiosa e condoída. Transeuntes questionavam quem estava para saber do que se tratava. A Lita dava explicações, deixando transparecer o seu desgosto por haver gente sem sentimentos. E quando a Tita foi salva, os rostos dos que assistiram à cena iluminaram-se de alegria.
Com todos os cuidados, a Lita assumiu-a como adoptante, até se encontrar uma solução definitiva. Acarinhou-a, alimentou-a, ofereceu-lhe uma cama digna. Um dia e outro. E mais um dia e mais outro. A gratidão da Tita ia aumentando. Impossível a separação. Quando pressentiu isso, o instinto garantiu-lhe que tinha agora uma nova família que a amava. Uma família para ela amar até ao fim da sua vida.
Fernando Martins