terça-feira, 8 de agosto de 2006

Um artigo de António Rego

Os momentos
luminosos
O mundo rola com os seus dramas e progressos, na história que prossegue em cada minuto, indiferente aos tropeços de fundo ou de circunstância que cada tempo propicia. O tempo de Verão, entre nós mais institucionalizado como de férias, origina situações pessoais e sociais de grande complexidade. Teoricamente é um tempo de encontro também para as famílias que passam grande parte do ano distantes dos idosos com a patriótica desculpa que o trabalho está acima de tudo. Essa frase deve ser particularmente irritante para aqueles que levaram uma longa vida de trabalho e, agora, mesmo na circunstância (excepcional) duma reforma desafogada, sentem o acumular da solidão, da aparente inutilidade e da falta de resposta para uma pergunta estimulante em cada dia: o que tenho hoje para fazer? A esperança de vida como que se voltou contra a própria vida ao oferecer tempo de sobra para nada fazer. E se os governos se inquietam a fazer contas com pouca gente jovem a trabalhar para muitos idosos, mais complexa é a teia de sofrimentos oriundos duma vida que parece ter perdido o sentido. E não é fatal que assim seja. As contas da natalidade são, por vezes, mal feitas no mundo com maiores recursos. A perspectiva do que é útil ou inútil padece frequentemente de desfoques imediatistas, esvaziados de perspectiva. E os afectos familiares dissipam-se, quantas vezes, por redundância de objectos que se tornam substitutos de pessoas. Não é fatal que o prolongamento de vida gere a maldição da tristeza e do isolamento. Os momentos luminosos de cada existência projectam-se nos tempos onde parecem imperar as sombras. Não é uma teoria de circunstância dizer que a velhice se prepara com o mesmo empenho e carinho com que se prepara o apogeu da vida. A cena da Transfiguração descrita nos Evangelhos transporta-nos a essa luminosidade transcendente de Jesus que no seu próprio coração e no dos discípulos encontrou sentido para as etapas da morte e da ressurreição. Ninguém entende a sua vida sem a referência aos grandes tempos luminosos da sua existência. E em boa verdade ninguém pode dizer que os não viveu.

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