sábado, 8 de julho de 2006

Um artigo de D. António Marcelino

AS DISTRACÇÕES
DO MUNDIAL
E OS PROBLEMAS
SOCIAIS
Era uma multidão ordeira que desfilava. À frente, um grande cartaz que dizia: “Para nós não há Mundial que nos distraia!” Dez mil ou trinta mil, segundo as diversas contagens dos polícias ou dos sindicatos, pouco interessa o número. O importante é que se tenham confrontado, com sentido, objectividade e de modo público, preocupações tão díspares. Enquanto a maioria do país se anestesia com a ânsia dos resultados do futebol e milhares se metem em aviões fretados rumo à Alemanha, há gente cuja vida sofre por problemas sociais graves que a atingem diariamente, fazem doer e fecham portas a horizontes de esperança. Quando está em perigo o pão, valem menos os jogos que divertem. Esta realidade nacional de uns que sofrem e outros que gozam ou se atordoam para disfarças sofrimentos e dores, é um dado da vida social que é necessário saber ler e tirar conclusões. Trata-se de uma realidade que tem expressões interpelantes em muitos aspectos da convivência humana e social. Os pequenos exemplos abundam. Por vezes, tudo se na pequena aldeia onde uma morte dolorosa e inesperada faz chorar alguns, mas não impede a festa que outros programaram. Tudo pode ocorrer com o barulho estrepitante próprio da festa, no mesmo largo do lugar onde está também a casa dos que velam e choram o seu familiar. Outras vezes é o menosprezo pelas carências da população, que não impedem o gasto esbanjador da festa, por pruridos e exageros de bairrismo. Momentos caros que pouco mais duram que o estalejar dos foguetes e o barulho do conjunto musical, ansioso por acabar depressa, porque já o esperam noutra festa, ali a uns quilómetros. Há uma tendência manifesta e crescente para que incomodem o menos possível aqueles que, por seus problemas e dores, podem estragar os projectos e planos de quem quer apenas gozar. A verdadeira solidariedade faz dizer: “Quem há aí que sofra, que eu não sofra com ele?”. Um sentimento difícil de concretizar, é verdade, porque mingua a empatia nas relações humanas e cresce o individualismo de quem se sente bem. Mas que é possível concretizar e alguns o fazem. Porém, no nosso país, este problema tem cada vez mais nós difíceis de desatar. Crescem as contradições, multiplicam-se as insensibilidades, apagam-se focos de educação para os valores, vinga o “cada um que se arranje”. São muitos os que não embarcam neste clima e contrariam, contra ventos e marés, este processo de morte. Mas o apoio, vindo de cima, não vai ao seu encontro. Esbanja-se em simpatias ocas e medidas loucas que nunca são inconsequentes. É preciso que haja quem diga que o Mundial não os distrai.

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