O sagrado,
a liberdade
e a responsabilidade
O notório caso dos cartoons foi alvo de um sem-número de comentários. Quando a poeira começou a assentar, a conclusão mais comum consistiu em proclamar mais um capítulo daquilo que nas bocas dos sábios dos nossos tempos corre pelo nome de “choque de civilizações”. De um lado, o “Ocidente”, defensor inflexível da “liberdade de expressão”; do outro, o fanatismo religioso islâmico que coloca o sagrado como critério primordial do que é possível fazer (ou dizer), ou não, no domínio do profano. Parecia ser mais uma manifestação da célebre antinomia amigo/inimigo, da separação entre “Nós” e “Eles”, que, para mais, tinha o mérito de contribuir para a definição que cada uma das partes em conflito fazia de si mesma. É preciso notar, no entanto, que a violência que acompanhou a tomada de posição dos que, em certas regiões do mundo, se sentiram ofendidos com a publicação dos cartoons contribuiu decisivamente para a polarização em torno destas duas partes. Contudo, o grau que essa violência atingiu e as suas manifestações concretas também permitem concluir que este problema ultrapassou (e ultrapassa) em larga medida o domínio religioso.
Concentrar-me-ei no exame de apenas uma das partes em conflito, a dita “ocidental”, a que se declarou, sem qualificações, pela liberdade de expressão. Todo o exercício da liberdade está sujeito a abusos (pelo menos potencialmente). Escutando as vozes dos partidários da liberdade de expressão, dir-se-ia que a publicação dos cartoons não foi encarada pelo mundo ocidental como uma manifestação dessa possibilidade. Muito simplesmente, não houve qualquer abuso da liberdade de expressão porque essa liberdade particular só muito raramente se presta a abusos. E como tantas vezes se insistiu, as referências religiosas não podem colocar limites ou entraves a essa liberdade; tal constituiria, isso sim, um terrível abuso.
O que o discurso dos partidários da liberdade de expressão também revelou foi aquilo a que se poderia chamar (recorrendo à expressão de Marcel Gauchet, “a saída da religião” no mundo moderno ocidental) “a saída do sagrado”. A “saída da religião” ou, neste caso particular, a “saída do sagrado” ultrapassa no seu significado o fenómeno conhecido por “laicização” ou “secularização”. A “saída do sagrado” corresponde à reestruturação do mundo, e dos “imaginários sociais” que o configuram, segundo a neutralização mais extrema da presença do divino no mundo sublunar e a desvalorização mais radical das suas representações. Assim, o “sagrado” não pode impor limites à liberdade de expressão, ou, por outras palavras, a responsabilidade que deve acompanhar o exercício da liberdade de expressão não pode integrar as exigências da fé e das hierarquias religiosas, porque estas foram expulsas do espaço público, do lugar por excelência onde a sociedade se pensa a si mesma, ou mais rigorosamente, se interpreta a si mesma. A religião ou, para falar mais genericamente, o sentido do sagrado foi “secundarizado” e “privatizado”; tudo se resume a uma questão de escolha pessoal, privada e subjectiva. Enquanto tal, não pode reivindicar um lugar diferente de todas as outras escolhas privadas e subjectivas. Mais: em relação a outras escolhas, a fé e o sentido do sagrado adquirem nos nossos dias o estatuto duvidoso da mais “privada” e “subjectiva” das escolhas, o que contribui decididamente para interditá-las do espaço em que decorre a discussão pública. Durante estes últimos tempos, a defesa, sem qualificações, da liberdade de expressão assumiu-se como o derradeiro capítulo dessa longa narrativa a que Max Weber chamou “o desencantamento do mundo”.
Parece, então, estar ausente do debate público uma terceira posição: uma que aceite a liberdade de expressão, e a liberdade da pessoa humana em geral, e, simultaneamente, a presença do sagrado no mundo. Ora, o Cristianismo contém, desde as suas origens, o princípio de separação entre Igreja e Estado; afirma a dignidade da pessoa humana e daí deduz o direito individual e grupal à(s) liberdade(s); mas não permite que, em nome da individualidade, se reduza a vida humana à soma de escolhas subjectivas, sem ordem, nem hierarquização. A liberdade tem limites, e não se considera um acto como autenticamente livre se não for acompanhado pelo princípio da responsabilidade. A acção livre ocorre sempre num contexto social e político; é por isso que o exercício dos direitos individuais e grupais se encontra limitado, não só pela existência dos direitos de outros indivíduos e de outros grupos sociais, mas também pelos imperativos da justiça e do bem comum. É precisamente essa a recomendação da Declaração do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa, Dignitatis Humanae (§7).
Alguns apontaram que a literatura e a iconografia do escárnio fazem parte da nossa “civilização” ocidental. Sem dúvida. Mas recordar o princípio da responsabilidade que deve sempre acompanhar o exercício dos direitos e reavivar os deveres da caridade também não é sintoma de “tibieza”, “cobardia” ou “rendição”. É o seu contrário.
Miguel Morgado
Docente de Ciências Políticas, UCP
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In "Observatório da cultura"