quinta-feira, 11 de maio de 2006

Um artigo de D. António Marcelino

PODE A CIÊNCIA
SER DOGMÁTICA
E O SABER
INDISCUTÍVEL?
Muitas décadas atrás, num esquema cultural como o nosso, no geral pouco aberto a confrontos com outros saberes e pareceres, a tendência para dogmatizar, por parte dos poucos que iam tendo acesso ao que de novo aparecia no campo cientifico menos vulgarizado, era muito frequente. Lembro-me que foi assim com as teorias de Freud, um homem de ciência de que se comemoram agora, por todo o lado, os 150 anos do seu nascimento. Uma boa ocasião para reflectir. Quem já então andava com livros na mão para aprender mais do que aquilo que se exigia ao comum, ou quem tinha de ensinar ciências que tinham a ver com o conhecimento da pessoa e os comportamentos humanos, não podia passar ao lado de Freud, mas também não podia deixar de procurar outros pontos de referência para uma compreensão mais adequada. A compreensão no campo científico nunca fecha portas a novas aquisições ou à melhor clarificação daquilo a que já se teve acesso. Foi assim comigo. Não pretendendo ser, neste aspecto, um cientista, a responsabilidade de educador e de professor de gente que havia de ser útil a outros, sempre me levou além do livro de texto e do que fazia parte da sua constelação. Procurei estudar Freud, ir pela sua mão um pouco mais além para desvendar a importância do inconsciente e sua influência, perceber o que no seu entender significavam os meios propostos para o conseguir. Pela formação humanista e filosófica e uma compreensão mais alargada da pessoa e das suas riquezas e capacidades naturais, sem retirar à sexualidade o seu sentido e dimensão, cedo achei exagerado o postulado freudiano que referenciava de algum modo ao sexo e à sua influência, os problemas que afectavam as pessoas. Freud era um psiquiatra, aí se desenvolvia o seu mundo. Ele passou, então, a ser a pedra de toque do valor indispensável dos psiquiatras, os novos “gurus” da sociedade, todos a confessarem-se freudianos, porque, em geral, não tinham outro horizonte que as escolas europeias que os haviam formado. Foram muitos destes que passaram a fazer escola entre nós. As novas gerações falavam, assim, a mesma linguagem, Aparecem agora cientistas abalizados, nacionais e estrangeiros, a ler com serenidade as aquisições de Freud e os aspectos em que enriqueceu o património científico mas, ao mesmo tempo, a relativizar, com igual serenidade, os seus dogmatismos redutores, continuados pelos discípulos mais fieis e menos críticos de ontem e de hoje. Certamente que os psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, cada um no seu campo próprio, mais preparados e sempre a actualizar-se, abriram seus horizontes e, sem fecharem os livros de Freud, sabem relativizar os absolutos de então, conscientes de que na ciência eles são empobrecedores e paralisam a capacidade e a vontade de estar disponível para ir mais além. Hoje, para muita gente e cada vez para mais gente, o divã do psicanalista e o consultório do psiquiatra e do psicólogo, tornam-se indispensáveis. Perante situações doentias sem especiais sinais orgânicos, ouve-se dizer se “já foste ao psiquiatra” ou se “já fizeste psicanálise”. O estilo de vida que por aí se vive, sem controle dos sentimentos, das apetências, do domínio do tempo, um estilo descomprometido de valores e de regras, de recurso diário à leitura sentimental, com preito ao superficial e ao efémero, não pode deixar de esvaziar as pessoas, levar à perda do sentido, fechar os horizontes da liberdade interior, fazer entrar em agonia ou em incapacidade de luta, privar de protagonismo e de vontade de libertação. Não pode deixar de gerar doentes, cada vez mais graves e menos adaptados à vida e aos desafios normais que ela comporta. Será que tudo isto encontra no divã e no consultório a solução e a cura? A pessoa humana, em toda a sua dimensão, leva consigo horizontes de vida e de vivência que são gritos, profundos e incontidos, de regresso às suas origens mais recônditas. Gritos que não se satisfazem apenas com o conhecimento do inconsciente e da sua influência. O médico da psique sente tanto as suas limitações, como o que põe o seu saber ao cuidado da saúde física e que já não se pode dispensar de ver a pessoa no seu conjunto e na sua história. O homem será sempre o “grande desconhecido”, mesmo quando se vai conhecendo melhor.

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