domingo, 28 de maio de 2006

Gotas do Arco-Íris - 19

Torreira: Ria de Aveiro
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ENGUIAS vs. CABO-DE-MAR
Caríssimo/a: «Enguias. São a tentação da gente marinhoa da Beira-Ria: negócio chorudo para alguns; delicioso passatempo para outros; petisco especioso para turistas; reclame sonoro da Murtosa e de toda a orla ribeirinha. Nas águas temperadas da Ria de Aveiro, onde a poluição lhes permite viver, fazem estágio permanente, ocultando a todos a sua origem misteriosa e hábitos. Dentre as artes tradicionais da pesca, a fisga, a fisga proibida, é a preferida. Os marinheiros, sempre no encalço dos prevaricadores, às ordens da Capitania e da Lei,são eterna consumição e perdição destes pescadores furtivos. As histórias que correm pela Borda d'Água sobre peripécias, fugas desvairadas, ludíbrios engenhosos da marinhagem na caça aos audazes prevaricadores, não têm conto. Vamos hoje a casa do Abílio da Pega ouvi-lo contar o que lhe aconteceu por mor das enguias e da maldita fisga. Personagens: o Abílio, o Cabo-do-Mar Madeira, o Comandante da Capitania de Aveiro. Repartamos esta miniatura trágico-cómica por três actos. Cenário do 1.º acto, a Ribeira do Solão. Cenário do 2.º acto, a Sala de Julgamentos da Capitania. O 3.º acto tem por cenário aquele que o leitor quiser imaginar a seu gosto. Todas as personagens fixaram há muito a sua residência no Bairro Social dos Mortos. Os cenários continuam os mesmos, tais como naqueles tempos, e os instrumentos do crime estão longe de serem considerados peças de museu, pelo contrário, têm-se multiplicado e aperfeiçoado, num repto audacioso à repressão policial e à lei. O Abílio não tinha família. Ninguém se sentia honrado em contá-lo no número dos familiares e amigos... Vivia sozinho num cubículo sem divisões, com uma única porta de contacto com o mundo exterior. Apesar da exiguidade do quartelho, conseguia inventar espaço para a tarimba, para a cozinha, para o w. c., e para a oficina de sapateiro-biscateiro-remendão, onde a mesa de trabalho era o móvel de maior vulto e valor. Pobre como Job e maroto como uma pega, quando os rendimentos das tombas e da graxa não davam para enganar o estômago exigente, pegava na fisga e, aos saltos (era coxo da perna direita e usava muleta) atravessava o adro da igreja de que era vizinho, e em meia dúzia de passos tinha a Ribeira do Solão, meio escondida do lado do cemitério e fora das vistas de quem passava na estrada a nascente. Tomava a bateira mais a jeito e, vamos a isto! Sempre junto à borda, porque o perigo rondava e os recursos para a fuga não eram muitos, uma mancheia de bichatas dava para a caldeirada. Depois, na loja, sempre havia alma caridosa que o obsequiasse com um copo, porque, embora vivam na água, as enguias, na caldeirada, ou na sertã, dão-se melhor com uma pinguita. Ora um dia, o Cabo Madeira, terror e caçador traiçoeiro dos fisgueiros, apanhou-o com a boca na botija. O Abílio não teve tempo sequer de se esconder entre a canízia que por ali cresce à vontade, e caíu como avezinha nas garras do gavião. Fisga apreendida e ordem para se apresentar na Capitania, em dia e hora aprazados. O Abílio não se afligiu. Não tinha nada a perder. No dia indicado na notificação que o correio trouxera dias depois, ainda no céu ardiam todas as estrelas, vestiu os andrajos mais sujos e rotos que encontrou, e com a barba de cinco semanas, meteu-se a caminho, a pé, por atalhos da marinha que bem conhecia. Passou a muleta quase cinco léguas, com incrível ligeireza para um coxo. O sol veio dar com ele à porta da Capitania. Aí aguardou, sob os olhares curiosos de quem ia entrando, que chegasse a vez de ser chamado. Da entrada da sala onde seria julgado, um marujo lançou no corredor o nome do Abílio. Ao lado do Cabo Madeira, que entretanto chegara, postou-se em frente do comandante-juiz que, perante a aparição inesperada daquele monte de trapos mal cheirosos, através dos quais se expunham porções do corpo, não pôde conter o espanto que lhe arregalou os olhos e entreabriu a boca como quem não acredita no que tem à sua frente. Pausa. Silêncio profundo com esboços de sorrisos nalguns rostos. [...]» O que aí fica é a primeira parte de “uma história por contar”, escrita pelo professor Jaime Vilar e que hoje me dá um jeitinho para prestar a minha homenagem ao Capitão do Porto há dias empossado e a todas as pessoas que com ele colaboram na difícil tarefa de manter um equilíbrio em toda a extensa laguna... Se for oportuno (e se me for permitido...) concluiremos a transcrição...
Manuel

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