sexta-feira, 28 de abril de 2006

Um artigo de D. António Marcelino

UMA PEDRADA
NO CHARCO Foi a grande notícia da semana. Com honras de páginas inteiras nos grandes jornais e tempo nobre nos programas televisivos. Mais um casino, em Lisboa! É o nono no país. Mas já se anunciam mais quatro. Depois se verá. Na inauguração, muita gente importante, que jogo é vício e prazer para gente rica ou que o deseja ser sem grande trabalho. É ainda vício de gente de cabeça perdida e esta também não falta por aí. Entretanto, palavras de consolação: vai haver uma sala com máquinas para gente com pouco dinheiro que pode jogar a cêntimos, criaram-se, directa e indirectamente, muitos postos de trabalho e, a favor do deficit do país, o que não é para desprezar, já se anunciam lucros de muitas dezenas de milhões com impostos garantidos… Estamos na primeira fila dos países importantes!... Nem mais. Quem fala de crise, é maldoso porque está à vista de toda a gente que, se houvesse crise, não abriam casinos. Eu sei que não é fácil ser consciência crítica numa sociedade que inverte os valores e se constrói fora da realidade concreta das pessoas e do conjunto nacional. Por isso o caminho mais fácil é contestar todos os valores e dizer que eles não existem e os que ainda por aí se proclamam não fazem falta. O dinheiro é tudo e quem o tem é grande. A propósito desta história do jogo nos casinos, nunca me saiu da memória o romance “Vinte e quatro não da vida de uma mulher”, lido na juventude E, ainda, o facto ouvido, nos meus tempos de criança, de um fidalgo lá da Beira Baixa, recordo bem o nome dele, que estava tão viciado no jogo, e já na miséria por via do mesmo, que acabou por jogar a própria esposa, sendo necessária intervenção do tribunal para decidir a invalidade de tão bizarra aposta. Quem sabe diagnosticar as novas formas de escravatura, afirma com conhecimento que o vício do jogo é de longe, maior e mais nefasto e complicado, que o vício da droga, do álcool, do tabaco ou do sexo. Não parece. É preciso o facto ser muito escandaloso para vir nos jornais. Falências em empresas, provocadas pelo jogo, encontram explicação na globalização da economia, na crise internacional e na impossibilidade de concorrer com os chineses... Neste mundo, sem nexo nem horizontes de vida, os que traficam, seja o que for, uns são condecorados, outros presos. Ao longo dos anos têm-se cruzado comigo vítimas do jogo. Desesperadas, com o peso de um rosto que não é o seu, com a vergonha de um vício que os amigos, quando não mesmo a família, nem sonham, sem verem como sair do cerco onde se sentem emparedados e como responder a compromissos assumidos, com a faca ao peito ou o cano na garganta, a que não podem fugir a não ser pela porta de quem se declara vencido. Como são possíveis os lucros de milhões, senão à custa de quem perdeu o controle de si próprio, entrou no círculo vicioso de continuar a tentar, vendo bens e esperança a esfumarem-se de vez? O jogo no casino não é um mero divertimento. Quando se teima em continuar a jogar, muitas vezes o que já não é seu, é a atracção inevitável do abismo. Agora, porém, o importante é tornar os casinos cada vez mais próximos de toda a gente e democratizá-los, de modo a que todos possam ter oportunidade de uma riqueza fácil ou de um suicídio sem apelo. Dirão que só lá vai quem quer, que não podemos estar atrás dos outros, que críticas como esta não merecem qualquer consideração. Pois seja. Porém, aqui fica mais um grito de denúncia, o incómodo de uma consciência crítica, a ousadia de dizer que o progresso do país ou o caminho para a sua libertação, não pode passar pelo fomento de novas formas de escravatura, mesmo que sejam aliciantes e rentáveis.

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