As eleições autárquicas têm uma característica no conjunto dos jogos eleitorais: atingindo todos os cidadãos – mesmo os que não votam ou não gostam de política – abrangem, mais que qualquer outra eleição, um elevado número de candidatos. Isto quer dizer que, feitas as contas, há milhares de pessoas no nosso país que foram sujeitas a uma espécie de julgamento popular. Um conforto ou uma ferida no ego, entre os escolhidos e os preteridos. Nem todos tiveram honras nacionais de tribuna mediática nas manifestações de festa ou desagravo. Mas todos sentiram o estremecimento do seu nome nas bocas do povo com a consequente escolha ou rejeição.
As autárquicas revestem-se duma tónica pessoal de estima, que ultrapassa a lógica da astúcia política ou da capacidade mobilizadora das massas. Votar, por isso, é também um acto de afecto.
Aqui surge um problema: preferir o Partido e rejeitar a pessoa que o representa. Ou o contrário. Foi esta a principal clivagem destas eleições que, feitas as contas finais, deram um resultado que se pode explorar e manipular nas direcções de quem ganha e quem perde, criando laudas para os vencedores e desculpas para os vencidos. O discurso político goza destas imunidades.
Tudo pode ser mais perfeito, mesmo em democracia. Com a verdade basilar de que é o cidadão anónimo, com a sua escolha implacável, quem proporciona toda a animação deste complexo jogo de poder. Aqui chegados, e com alguns casos inéditos na escolha de eleitos tecnicamente falidos mas no final vencedores, voltamos ao quotidiano dos pequenos e grandes senhores nos pequenos e grandes locais. O esquema pouco varia e o exercício do poder como acto ético apenas se diversifica quantitativamente. Em substância, estão em causa os mesmos valores.Mas no terreno político há sempre um fio subterrâneo e invisível que se junta a outros para tecer os meandros de nomes, jogos, influências, prestígios. E o contrário: o aniquilamento discreto de concorrentes, adversários ou inimigos políticos. Neste todo parecem cada vez menos decisivas as originalidades ideológicas. Três ou quatro pontos distanciam partidos e concorrentes. Os acessórios políticos, anexados ao afecto, fazem o resto.
O que resta deste todo? O santuário íntimo da consciência dos cidadãos (eleitos) que, cientes das realidades e linguagens do universo político, não vendem os seus princípios ao rodopio de interesses ocultos que por vezes envolvem o universo político.
O povo é sábio. Mas nem sempre está senhor de todos os dados que compõem a complexa teia política. Também na política a formação permanente é geradora de lucidez.