Um artigo de D. António Marcelino
Já não são muitos os sobreviventes activos dos tempos anteriores ao Concílio. Quarenta anos depois, há necessidade de uma reflexão para ver onde nos encontramos, segundo o que é legítimo esperar do maior acontecimento da Igreja no séc. XX.
Não é um exame fácil, a menos que se saiba ler o que se passa hoje, o que está para além do que se vê, o que influencia uma parte da vida que já se vive e o que não consegue influenciar o rumo determinante da mesma. Situar-se, por fim, no meio do vendaval que sopra, por vezes inclemente, e vai derrubando gente por todo o lado. Sou um desses sobreviventes, ordenado padre antes do Concílio, já lá vão cinquenta anos. Estudei em Roma, ainda por livros antigos que já iam perdendo folhas. Regressei à terra-mãe, chamado a uma missão para a qual me julgava sentir tão seguro, como perplexo. Entrei logo numa equipa generosa que preparava, em casa nova, novos padres para a Igreja e fui sentindo que estes, sendo padres como eu, não o iriam ser do mesmo modo. Fui dando por mim a ver o mundo e a Igreja com outros olhos, sem perceber ainda o rumo que tudo iria levar. Abri-me, desde então, com decisão e generosidade, à formação dos leigos, porque cedo percebi que o padre diocesano, na sua missão diária, ou é um cristão com os cristãos leigos ou não sobreviverá, pastoralmente, como padre.
Nesse caminho, com muitos horizontes e perspectivas, mas com mais lama e buracos que os que olhos lobrigavam, não se ia em frente sem dificuldades, próprias e alheias.
Foi então, à sombra de S. Paulo, o Apóstolo dos gentios, que numa manhã de Janeiro, ressoou o grito inesperado, mas por muitos desejado, do anúncio de um Concílio.
A serena sabedoria de um Papa já idoso, o sorriso inesquecível de um homem bom, no qual se percebia a acção discreta, mas determinante, do Espírito de Deus, deixou-nos alegres e tranquilos. Todos vibrámos de entusiasmo. O Concílio era a porta nova que se abria e fazia falta à Igreja, para seu bem e da sua missão na sociedade. Era o explodir da novidade inquietante de um Deus vivo, que sabe esperar, porque não desiste de nós.
Na Igreja viveu-se uma nova esperança. O mundo, mesmo o dos não crentes, olhou João XXIII com respeito e admiração. O entusiasmo dizia-nos, porque os tempos eram outros, que não seria, por certo, uma simples reedição de concílios dos tempos idos. Os guardiães tradicionais do castelo da ortodoxia, onde se guardava uma doutrina séria e intocável, medrosos a princípio, porque pouco lhes chegavam os ecos de um mundo sofredor, logo sonharam que o Concílio poderia ser o reforço necessário das velhas muralhas que já pareciam balançar com a progressiva irrequietude do mundo moderno.
Vivi com o entusiasmo de um padre novo e inquieto, tudo quanto se ia desenrolando. Não se podia saborear apenas a novidade do Concílio. Era preciso pôr as dioceses em clima conciliar e alimentar este clima com encontros por todo o lado, dando a conhecer cada documento que chegava e explicando o seu alcance. As longas distâncias e as frias noites de Inverno não esmoreciam os esforços exigidos para tudo isto. Trabalho árduo! Esta apaixonante tarefa de colaborar com os padres conciliares na renovação da Igreja e das suas estruturas pastorais ao serviço da missão recebia estímulo do interesse dos leigos e das comunidades cristãs, ávidos dos frutos novos do Espírito. Foi assim, mais ou menos, em todas as dioceses do país, que também eu calcorreei, algumas com outros padres, ajudando a levar para a frente esta esperançosa causa.
Regressar às origens do Evangelho, fonte inesgotável da verdade e do amor que anima a vida da Igreja e a sua missão de serva dos homens e mulheres de todos os tempos, prestar atenção e dar resposta à realidade e à cultura emergente, era o desejo e o propósito do Concílio para aprofundar a visão renovada da Igreja, da sua natureza e missão; tomar consciência das raízes vitais e alimentar-se delas; limpar a ferrugem do tempo nas celebrações litúrgicas essenciais e nas estruturas pastorais; reaprender os caminhos da inter-relação e da presença da Igreja no mundo contemporâneo e escancarar a janela dos novos horizontes da vivência cristã e das urgências da missão. Vive a Igreja, ainda hoje, este projecto renovador? Irei continuar a reflexão.