Ponte Romana |
Voltar a Chaves, mesmo que só um dia, é sempre um prazer. Encontro amigos, calcorreio ruas que há anos me foram familiares, nos tempos em que por lá fazia campismo com a família, aprecio jardins cuidadosamente tratados, contemplo monumentos carregados de história e respiro o ar puro do Reino Maravilhoso de Trás-os-Montes, no dizer poético, mas autêntico, de Miguel Torga.
Na quinta-feira, dia do Corpo de Deus, fui encontrar a capital do Alto Tâmega com toda a sua beleza e conviver com gente solidária, que sabe cultivar amizades através dos tempos. O motivo da minha visita foi a comunhão solene de uma criança, a Alexandra, que há anos tive o privilégio de baptizar, na qualidade de diácono. E foi muito bom recordar outras estadas em Chaves, cujos recantos e pessoas tive a dita de conhecer de perto.
Foi então, com muita satisfação, que voltei a apreciar a igreja de Santa Maria Maior, a Igreja Matriz, como é conhecida. Templo românico, mas muito alterado nos meados do século XVI. Ao lado, lá está a Igreja da Misericórdia, do Estilo Barroco, onde um dia participei numa missa que durou uns 20 minutos. O sacerdote, velhinho, celebrou sentado para não se cansar muito.
Olhando à volta, como podia ficar indiferente à Torre de Menagem, resto do primitivo castelo mandado construir por D. Dinis, no século XIV. Ruas estreitas, medievas, circundam a praça principal, a Praça Camões (Segundo José Hermano Saraiva, Luís de Camões teve as suas origens em Vilar de Nantes, Chaves, de onde eram naturais os seus avós), que mostra a Câmara Municipal, o Museu e a estátua de D. Afonso, Conde de Barcelos, Duque de Bragança e Senhor de Chaves, filho ilegítimo de D. João I, o de Boa Memória. Senhor de Chaves, que casou com a filha de D. Nuno Álvares Pereira, que lhe deu fortuna.
Depois, foi a vez de contemplar a ponte romana que atravessa o rio Tâmega, construída entre o século I e o século II da nossa era, que ainda conserva intactos 12 arcos, que teimam em desafiar o tempo. Duas colunas, epigrafadas, são símbolos de gentes que ocuparam e viveram na Aquae Flaviae, a Chaves de hoje, tornada famosa pelo imperador Flávio Vespasiano, que ali chegou atraído pelo ouro da Serra da Padrela. O Forte de São Francisco, o Forte de São Neutel, igrejas e capelas, palacetes e jardins, de tudo um pouco nos oferece esta cidade que aceita como visitantes mais frequentes os nossos amigos espanhóis. Mas o que mais projecta a Capital do Alto Tâmega, desde a antiguidade até aos nossos dias, é, sem dúvida, a oferta termal. Balneário moderno, com águas bicarbonatadas, sódicas e hipertermais, das mais quentes da Europa (73º), garante cura a muitas maleitas.
Estar em Chaves é recordar visitas a Espanha, em especial a Feces de Abajo, a aldeia fronteiriça que nos desafiava a experimentar, em espírito de aventura que os mais novos tanto apreciavam, os caminhos dos contrabandistas, para comprar caramelos, chocolates… entre outras coisas, mas também para beber coca-cola, bebida na altura proibida pelo doutor Salazar.
Estar em Chaves é ter o gosto de saborear o seu genuíno presunto, os pastéis quentinhos com o nome da cidade, e o folar típico, como não há outro. E daqui ainda se saía à procura do vinho dos mortos, em Boticas, da Chega de Bois, em Montalegre, da Pedra Bolideira, na estrada que leva a Bragança, dos Castros da Curalha e de Carvalhelhos, este em Boticas. Sempre em excursões familiares, onde se cultivava o prazer da descoberta. Melhor que tudo, porém, estar em Chaves é conviver com gente estruturalmente sã e aberta, com uma capacidade enorme para preservar amizades.
Afinal o Reino Maravilhoso que Miguel Torga tão bem pintou, reino de pedras e montanhas, de tradições e de gente determinada que sempre disse que “Para cá do Marão, mandam os que cá estão”. E ao falar dos transmontanos, o poeta da Criação do Mundo, dos Contos da Montanha, do Diário, dos Bichos e de Portugal, entre tantas outras obras, diz que são “fiéis à palavra dada, amigos do seu amigo, valentes e leais (…), ufanos da alma que herdaram”.
Fernando Martins :
De Miguel Torga
Chaves, 6 de Setembro de 1986
Miradoiro
Não sei se vês, como eu vejo
Pacificado,
Cair a tarde
Serena
Sobre o vale,
Sobre o rio,
Sobre os montes
E sobre a quietação
Espraiada da cidade.
Nos teus olhos não há serenidade
Que o deixe entender.
Vibram na lassidão da claridade.
E o lírico poema que me acontecer
Virá toldado de melancolia,
Porque daqui a pouco toda a poesia
Vai acontecer.
Chaves, 26 de Agosto de 1990
Visita sacramental a S. Caetano, um santo fronteiriço que tem na terra os serviços administrativos modelarmente organizados. “Meta as esmolas nos petos” – avisam os letreiros. E lá estão as tulhas para os cereais, a grade para os galináceos, e o orifício aberto na parede granítica da capela para encarreirar a pecúnia.
Peregrino anual e céptico, não peço ao orago graças que sei que não pode conceder a um mau romeiro. Bebo-lhe a água gelada da fonte de três bicas, regalo os olhos na paisagem aberta e larga, espreito o cemitério visigótico precariamente preservado e fico satisfeito. Mas volto sempre, e sempre com a mesma curiosidade e disponibilidade emotiva. A minha bem-aventurança começou quando abri os olhos no mundo e há-de acabar assim, quando, já cansado, de tanto o ver e surpreender, os fechar.