Um documentário transmitido há dias pela ARD, estação pública de televisão da Alemanha, veio abalar a imagem ainda hoje corrente de Albert Speer, o arquitecto que chegou a ministro do Armamento de Hitler. Tradicionalmente considerado como um gentleman nazi, Speer era visto sobretudo como um inofensivo homem de cultura, que tinha excelentes relações pessoais com o Führer. Sabe-se, agora, que ele participou activamente na organização do Holocausto e que até enriqueceu com bens tirados a judeus. Mas o facto de A. Speer se ter revelado um "organizador do mal" não contradiz o facto de ele ser uma pessoa culta.
Vem isto a propósito da questão levantada por Manuel de Lucena (DN do dia 10) sobre se Hitler era ou não culto. "Sendo a cultura, para muita gente, depois da 'morte de Deus', o sumo Bem, como poderia ser culto este homem no qual, mais do que em qualquer outro, terá encarnado o Mal? Não obstante, lá que a seu modo ele foi bastante culto - muito mais, em todo o caso, do que grande parte dos nossos actuais políticos - eis o que se me afigura inegável."
Concordo com Manuel de Lucena. Só não vejo qualquer incompatibilidade entre a cultura e o mal. A barbárie do nazismo e do Holocausto aconteceu num dos países mais cultos do mundo - não foi no "terceiro mundo" ou na atrasada Rússia. Já aqui lembrei que alguns torcionários nazis eram grandes melómanos. E inúmeros músicos, pintores, poetas, romancistas de primeiro plano, como pessoas foram autênticos estafermos, gente de baixo estofo moral. A cultura é algo excelente, claro. Mas, por si só, ela não defende ninguém do mal. Até pode refinar o mal. Quem espera da cultura a perfeição moral engana-se. O belo e o bem talvez se encontrem algures. Mas, pelo menos por enquanto, eles não coincidem neste mundo.