quarta-feira, 4 de maio de 2005

Um artigo de D. António Marcelino

O espírito das leis e a democracia
Ouvimos, cá dentro e também lá fora, que as leis mais discutíveis que os governos vão propondo e se promulgam depois, são muitas vezes resposta a promessas de programas e campanhas eleitorais.
Todos sabemos que o tempo de eleições visa, acima de tudo, a conquista de votos e, nesse contexto, prometer é sempre fácil. O drama surge quando, em clima de maior serenidade e apreciação da realidade, há que dar ao povo uma resposta que implique novas leis. Drama ainda maior, quando a matéria em causa exige que se prevejam e apreciem, de modo responsável, as consequências negativas que podem advir de tais leis.
Um governo e um parlamento não legislam para os seus apoiantes e correligionários. Legislam para um país concreto, para todos, sem excepção. Isto obriga a que se procure a justiça e a perfeição possíveis, para que as leis visem o bem de toda a comunidade, não sejam fracturantes, ajudem a união possível de todos os cidadãos, sejam respeitadoras e promotoras de valores que a todos dizem respeito.Montesquieu, o famoso autor de “O espírito das leis”, deixou escrito que “ Tal é o efeito das más leis que são precisas leis ainda piores para travar as desgraças das primeiras.” Assim o vamos verificando. Podia-se romper o ciclo vicioso do “mal a atrair mal maior”, se se prestasse maior atenção à comunidade e se procurasse, com leis justas e inteligentes, não a satisfação dos pequenos grupos de pressão, mas o bem possível para o conjunto.
Não se poderá nunca dizer, a menos que se deturpe e degrade o sentido da democracia, que quem tem o poder em maioria o pode exercer de modo arbitrário e conforme o seu mundo de interesses e valores. Quem governa não é dono do povo, nem pode, por ter ganho eleições, desconhecer a história, apagar ou desprezar valores comuns, interpretar a seu modo os direitos humanos fundamentais, mudar a natureza das pessoas e das coisas, ganhar adeptos e conquistar as simpatias, à custa do sacrifício de muitos e da destruição do património cultural e moral. Governar é sempre servir.
Hitler, que agora é trazido à memória de todos nós, também ganhou, democraticamente, o poder. Foi uma maioria parlamentar que lhe deu azo a manchar de sangue e de ódio a história. Pode dizer-se que o nazismo foi fruto de uma democracia desvirtuada. E não só o nazismo.
Será que as consequências trágicas de leis de maiorias, como a actual lei do divórcio, a que se pretende para o aborto, as discricionárias em relação à família, só se poderão resolver com outras leis ainda piores?
Quem chega ao poder, qualquer que seja o tempo da chegada, ontem e hoje, não pode mostrar sabedoria mudando tudo. Às vezes, só o nome, mas já nem isso é inócuo. A democracia, que não é um regime perfeito, pode, como a história, proporcionar saber cívico a quem desejar aprender.

Sem comentários:

Enviar um comentário