O Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré concretizou, há anos, um sonho, quando montou uma casa-museu - "A casa gafanhoa" -, não só para recrear o lar tradicional dos nossos avós, com todos os seus pertences, mas também para tudo depois poder mostrar aos actuais e futuros gafanhões e, ainda, aos turistas mais interessados em conhecer de perto a vida dos nossos antepassados.
A casa antiga, que foi do senhor Vergílio Ribau e de esposa, D. Maria Merendeiro, foi preservada com muitos dos seus haveres e enriquecida com outros, oferece aos visitantes um conjunto agradável de ver. Vale a pena, por isso, ser visitada, para se ficar a conhecer um espaço museológico com muitos sinais do princípio do século XX.
Da nossa memória, respigamos algumas lembranças da casa gafanhoa, que aqui registamos como subsídios para a História da Gafanha. Muito do que podemos recordar está em "A casa gafanhoa" para poder ser apreciado, com atenção. Desde a cozinha com a sua trempe de ferro, às panelas de três pés, aos aparadores, mesa e bancos toscos, até aos talheres de ferro e talvez de cabo de osso, passando pela cantareira com a respectiva cântara de ir à fonte buscar água, junto à mata da Gafanha, que dava gosto beber pela sua limpidez e frescura (que lhe era dada pela cântara de barro), sem esquecer o chão de junco, na cozinha de fora, mais modesta, e às vezes na principal, de tudo um pouco ali encontraremos para regalo dos olhos e da alma e encanto da nossa imaginação tão sofistica nos dias que correm pelo que quase todos possuímos. Sem esquecer, como é óbvio, na cozinha de fora, o forno onde se fabricava a sempre apetecida boroa de milho (e com que apetite era esperada a bola - boroa pequena e achatada - para comer com chouriço ou alguma carne de porco, mesmo gorda) e, por vezes, embora raramente, de outros cereais. E também a salgadeira que guardava, no sal, o porco, governo de todo o ano.
Os quartos, sempre pequenos, onde mal cabia uma cama e a respectiva mesa de cabeceira, com a mala do enxoval da casa, quantas vezes sem guarda-fatos e sem outros móveis, que o dinheiro e os hábitos não davam para mais, também hão-de ser motivo de admiração.
Sobre a cama não faltarão as mantas de tiras, que as tecedeiras fabricavam com farrapos e restos de roupa velha, tiras essas cortadas nas noites de Inverno, ao serão, sobretudo pelas mulheres da casa. Mas ainda se hão-de admirar cobertores grosseiros de lã, lençóis de linho churro e a um canto o lavatório, normalmente só usado aquando da visita do médico a algum familiar doente.
A sala do senhor, à frente, que se abria na Páscoa ou em dias de casamento ou baptizado, com um crucifixo sobre uma toalha alva, em cima da cómoda, onde se guardavam as roupas brancas e de festa. Havia cadeiras à volta, retratos nas paredes, principalmente dos casamentos, ampliados, que são actualmente grandes e importantes fontes de conhecimento da maneira de vestir e de ser das pessoas dos tempos antigos, sobretudo desde que a fotografia começou a marcar presença e a registar os principais acontecimentos das famílias. Aliás, em cima da cómoda, onde dois castiçais suportavam outras tantas velas para acender em dias de trovoada e, ainda, quando havia a visita das almas e quando se velavam os mortos, podiam ver-se algumas fotos de datas marcantes da família, a par das jarras de flores, renovadas semana após semana.
Fora da casa principal podia ver-se a cozinha do forno, com chão de junco e panelas e tachos exteriormente cobertos de sucessivas camadas de fumo, que era sempre muito quando se cozinhava, já que se fazia o aproveitamento total de tudo o que pudesse arder, mormente talos de couves, gravetos de árvores, bicas, pinhas, caroços de milho e serrim, entre outros combustíveis sólidos. Era preciso poupar e tudo servia para evitar a compra de madeira.
Com o serrim, que era fornecido pelas serrações e pelos estaleiros, utilizava-se o "sarico" (não sei de onde vem o nome), formado de uma lata de tinta, vazia, com um furo lateral por onde se chegava o lume. Enchia-se de serrim, havendo o cuidado, primeiro, de lhe introduzir duas garrafas: uma na horizontal, que dava para o tal furo, e outra na vertical, que pousava sobre a primeira. Assim ficava uma parte oca, entre o serrim, por onde ele começava a arder, para cozinhar o apetitoso caldo de feijões das nossas avós, onde não faltava nada, desde os indispensáveis feijões, que lhe emprestavam o nome, até às batatas, passando por couves, nabos, arroz, massa, toucinho, chouriço e morcela, entre outras carnes de porto. Era o tal caldo onde, depois de frio, se podia espetar uma colher que ela não caía. Tudo isto e muito mais se há-de ver, para crer, na casa gafanhoa, que fica ali perto da igreja, na rua S. Francisco Xavier, no canto "das Vinagres".
No pátio interior não faltarão as padiolas, os carros de mão e de vacas ou bois, com todos os seus apetrechos, as várias alfaias agrícolas, encabadas com paus toscos, a charrua e o arado, a um canto o galinheiro para as galinhas e galos, sobretudo, se refugiarem à noite, pois que de dia andavam, normalmente, a campo, comendo sementes, restos de comida e bicharada, quando não comiam outras coisas bem piores. E também não faltará a retrete, pequena e de tampo de madeira, com o indispensável buraco a meio, que quarto de banho era coisa que não existia. E porque falamos de quarto de banho, o tal que só apareceu muito mais tarde, talvez na década de 50 para o grosso da população, que os mais ricos já o tinha havia algum tempo, se não nos falha a memória, perguntar-se-á onde tomavam banho os gafanhões.
Ao que nos têm dito, tomavam-no na cozinha, geralmente ampla e que dava para o viver do dia-a-dia, numa grande bacia de lata, com água aquecida nas panelas de ferro de três pernas. A água estava sempre quente, para o que fosse preciso, porque se cozinhava em panelas mais pequenas. Para o que fosse preciso, significa para lavar a loiça e para se lavarem, antes de se deitarem, especialmente os pés, que nem tudo podia ser lavado todos os dias, talvez por falta de hábito.
Para o pátio interior ainda davam os currais dos porcos e das vacas ou bois, que sempre berravam acusando a falta da lavagem, os primeiros, e da erva ou palha seca, de milho, os segundos. O celeiro também tinha uma porta para este pátio e às vezes para o exterior. Nos beirais dos telhado viam-se as abóboras a secar e à espera do Natal, para fazer os bilharacos.
No pátio de fora não faltava a eira, onde se malhavam e secavam os cereais, cobertos de noite pelo tolde, feito de palha de centeio, a estrumeira (quando não era no pátio interior), para onde se deitava tudo o que pudesse transformar-se com o tempo em esterco, tão necessário à fertilização dos solos, a par do moliço e de mistura com ele. Viam-se as medas de palha e o "cabanéu" (prisma triangular, feito de uma armação de troncos de eucalipto e de ripas, e deitada sobre uma face), onde se arrumavam lateralmente e num dos topos, bem apertadas para não entrar a chuva, as palhas de milho, secas, para no Inverno servirem para alimento do gado.
No interior guardavam-se alfaias agrícolas, menos usadas no dia-a-dia, e também ali dormiam, em especial os filhos da família, quando havia milho na eira, para o guardar dos ladrões que às vezes deixavam o lavrador sem nada do que granjeou durante todo o ano agrícola. Claro que não podemos esquecer, o poço, de onde se tirava a água para os usos domésticos, e um outro, o de rega, com o seu engenho puxado por vaca ou boi, que servia para regar o aido.
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