É urgente recuperar a nossa capacidade de sonhar
A que é hoje a Rádio Terra Nova (RTN) começou como “rádio pirata” em 12 de julho de 1986, num período de condescendência legal. Este período durou até 31 de dezembro de 1988. A 26 de março de 1989, domingo de Páscoa, reiniciaram-se as emissões… agora com o estatuto de órgão de comunicação social, lembrou Vasco Lagarto, fundador e diretor, desde o primeiro passo, da rádio que emite em 105 FM. Já lá vão, como estação oficial, sem interrupção, 25 anos.
Olhando para a história, o nosso interlocutor sublinha que valeu a pena, acrescentando: «embora a rádio seja uma “coisa” de todos os dias, fez-se muito de que nos podemos orgulhar; uso aqui o plural porque existem muitas pessoas que ao longo dos anos contribuíram para que a Terra Nova conseguisse a notoriedade que tem hoje.»
Admite que não está propriamente «arrependido do que fez», pois julga que o trabalho desenvolvido ao longo destes anos «permitiu valorizar a nossa região, a nossa comunidade; contudo se pudesse voltar atrás, faria algumas coisas de forma muito diferente, sem dúvida…».
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Vasco Lagarto, fundador e diretor da Terra Nova |
Sobre o impacto da RTN na comunidade, o diretor Vasco Lagarto questiona-se sobre se a nossa rádio «toca» a alguém, mas logo sublinha que algumas boas reações, vindas de perto e de longe, o fazem mudar de ideias. «É o e-mail que se recebe de longe, é o comentário no “Facebook”, é a reportagem sobre a nossa vida e sobre as nossas pessoas, é o entusiasmo dos miúdos quando visitam a rádio…»
Defende e esclarece, porém, que «é preciso assumir-se que uma estrutura destas não vive só de sentimentos e sensações! Precisa de pessoas que, através do seu trabalho, nos transmitam ou permitam viver essas mesmas sensações…e para isso são precisos recursos financeiros! Se a comunidade à nossa volta está consciente disso... Penso que muitos não estarão… Quando digo que a Terra Nova custa, no mínimo, 250€ por dia, muitos ficam surpreendidos».
E como alerta à nossa consciência de ouvintes da RTN e cidadãos, que nos dizemos comprometidos na sociedade, frisa: «Como tudo na vida, muitas vezes valorizamos as coisas e as pessoas quando as deixamos de ter junto de nós!…Pode ser que o mesmo aconteça com a Terra Nova, ou seja, que se note o vazio quando desaparecer ou deixar de ser o que é hoje.»
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Luís Loureiro e Maria do Céu, no programa "Pauta Desportiva", agosto de 1986 |
Luís Miguel Loureiro, jornalista da RTP e docente universitário, que iniciou a sua paixão pela comunicação social na RTN, evocou o nascimento das rádios locais como resposta «a uma necessidade de levar mais longe a democratização do acesso dos cidadãos ao espaço público». Fazendo um pouco de história, disse que nessa época havia energia no seio das comunidades, qual «grito de liberdade» do poder local democrático, bem expresso nas instituições que se foram impondo e empenhando na valorização das sociedades. Referiu que «foi neste caldo que a rádio se formou», desempenhando, certamente, «um papel nessa época que é hoje irrepetível». Luís Loureiro adianta que foi «nesse ADN de forte ligação local a uma noção de comunidade que, apesar das distâncias físicas, se continua a definir pela sua identidade gafanhoa» muito grande, «onde quer que esteja», tendo aí a rádio um papel significativo. E esse papel, «por muita que tenha sido a evolução, ainda não tem substituto a altura».
O nosso entrevistado admite que o papel desempenhado pela Terra Nova «foi certamente fulcral na formação cívica de muitos jovens de então», sendo que «as horas e horas, os dias, os anos de dedicação quase totalmente graciosa ao projeto muito livre e sempre evolutivo da Rádio Terra Nova, resultaram num conjunto de pessoas que hoje desempenham um importante papel artístico e cultural, social, económico e político, um papel de cidadãos verdadeiramente comprometidos. Isso foi conseguido, não só mas também, pela Rádio».
Considerando-se crítico «da forma de governação caciquista e castradora da imaginação libertadora que marcou os anos noventa, em termos políticos e sociais», Luís Loureiro denuncia «o novo-riquismo bacoco em que nos entretivemos depois da adesão à UE», o que levou ao adormecimento das nossas comunidades. E afiançou: «A evolução global, de mercado, para sociedades altamente individualizadas viradas para o consumo e para a posse material, acabou com a possibilidade de nos reunirmos de volta e repensarmos o nosso papel como agentes de mudança e evolução social.»
Como desafios a levar à prática, o nosso interlocutor «gostaria que pensássemos em projetos de intervenção cultural que voltassem a provocar o encontro face a face», mas ainda «que nos instigassem a trabalharmos intergeracionalmente», os mais experientes com os menos experientes», devolvendo «às comunidades os desafios que as fizessem querer-fazer».
Luís Loureiro defendeu que é urgente recuperar «a capacidade de sonho, sob pena de, daqui a umas décadas, já nada restar do que fomos e, certamente, já nada de nós restar sequer como promessa de futuro em comum».
Fernando Martins
Nota: As entrevistas que serviram de base a este texto foram feitas por e-mail.