Neste domínio, há um pudor que nos habita. Peço, pois, a compreensão benevolente do leitor.
Quando os meus pais morreram, olhei - era o fim de um mundo! - e constatei que o que deles restava não eram eles e lembrei-me daquela pergunta lancinante que Tolstoi coloca na boca de Ivan Ilitch moribundo: onde é que eu estarei, quando cá já não estiver?
Sempre que passo pela terra que me viu nascer, faço uma visita ao cemitério e, ali, diante dos seus túmulos, ouço as palavras do anjo às mulheres diante do túmulo de Jesus : "Não está aqui!"
Diante da morte, fazemos a experiência do mistério pura e simplesmente. A morte é o absoluto, sem relação. O absoluto tem uma dupla face: a morte e Deus. Daí, tudo quanto dizemos sobre a morte e sobre Deus sentirmo-lo como nada que nos convoca para o silêncio, segundo o preceito de Wittgenstein: "Sobre aquilo de que se não pode falar deve-se calar."
Para onde vão os mortos? O que é morrer e o que é a morte? Depois, o quê?
Impressionou-me em extremo a declaração do teólogo J. I. González Faus sobre o pai, que lhe transmitiu a fé e que considera "uma grande personalidade": "Terminou a sua vida derrotado e duvidando de Deus como quase todos os humanos."
A morte e o seu depois constituem para nós uma tenaz: impensáveis que nos obrigam a pensar. Impensável que tudo acabe como impensável qualquer depois. Lá está Pascal: "Incompreensível que Deus exista, e incompreensível que não exista; que a alma seja com o corpo, que não tenhamos alma; que o mundo seja criado, que o não seja, etc."
O filósofo ateu E. Bloch é modelar nestas perplexidades. A mim perguntou-me ironicamente onde é que meteria tantos milhares de milhões de seres humanos, se houvesse ressurreição dos mortos. Um dia, em Viena, disse que, se houvesse ressurreição, as galinhas estoirariam a rir. Mas, na juventude, admitiu a reencarnação. Na maturidade, teorizou sobre "o núcleo do Humanum extraterritorial à morte".
Bloch casou com Else von Stritzky, uma cristã de Riga, e a relação que entre os dois cresceu foi a de um amor como há poucos. Ela morreu jovem, e o filósofo foi fixando no Diário a sua dor, aliviada pela esperança do reencontro "do Outro Lado" (Drüben), "no Além" (Jenseits).
O teólogo J. Moltmann contou-me que, poucos dias antes da morte, lhe perguntou como reagia a esse desafio, tendo ele respondido: "Estou curioso" - note-se, porém, a força da palavra alemã "neugierig", com o sentido de ansioso por novidades. Moltmann também escreveu que "na véspera de morrer, ao entardecer, ele escutou mais uma vez a sua música mais querida, a abertura de Fidelio, de Beethoven, com o sinal das trombetas para a libertação dos cativos no final". Essa passagem, que associava à Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses, 13, 16: "Quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá dos céus e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro", sempre o comovera. É que, como escreveu, "em Beethoven, pré-anuncia-se a chegada de um Messias. Erguem-se desde as masmorras sons de liberdade e de recordação utópica. O grande momento chegou, a estrela da esperança cumprida no aqui e agora".
Depois da morte, é a eternidade: a eternidade do nada ou eternidade de Deus. Mas não se tratará da dupla face da mesma eternidade, como diriam, no limite, os místicos? Não será a pergunta - para onde foram os mortos?, onde estão os mortos? - que é mal formulada? Porque os mortos não foram nem estão: a pessoa dos mortos é.
Por mim, nos dias 1 e 2 de Novembro - os dias em que as nossas sociedades científico-técnicas, que fizeram da morte tabu, permitem a visita dos mortos -, coloco um CD com o Requiem Alemão de Brahms e outro com o Requiem de Mozart no leitor de CD, em homenagem aos meus pais, amigos e todos os mortos - poderão ser uns cem mil milhões. A música diz-nos o indizível: o que é existir simultaneamente no tempo e fora dele.