O TIO JOÃO AMARANTE
Caríssima/o:
Apetecia-me escrever
como o Prior Resende:
«E agora um episódio
para fechar este capítulo.»
Vamos então espreitar das páginas 85 a 87, da sua Monografia, e enquadremos a cena em verdadeiro espírito quaresmal.
«João Amarante, de proveniência incerta, veio de abalada por aí fora até poisar na charneca paulenta da Gafanha, a uns 200 metros ao sul da actual estrada de Ílhavo para a Costa Nova. Mal tratado pela fome, lá ia remexendo a areia, a ver se dela podia colheitar algumas batatas e ervilhas que lhe enchessem o estômago e lhe cobrissem os ossos. Mas aquela magreira não se debelava, nem pela polpa dos caranguejos, nem pelas caldeiradas dos barbudos camarões.
A necessidade obrigava-o a arrotear a improdutiva areia. Destruída a primeira barraca de madeira, surgiu uma nova construção de barro, mais sólida, que ele preventivamente cercava de junqueiras para arrostar a inclemente invasão das areias furiosamente tocadas dos ventos. Por algum tempo viveu feliz o tio Amarante com as caldeiradas de batatas condimentadas com os caranguejos e camarões.
Eram assim as caldeiradas dos pobres, à falta da saborosa enguia ou do delicioso peixe do mar. As ervilhas e as favas eram um repasto mais reconfortante para a hora do meio dia. Pouco lhe aproveitavam as marinhas além porque não havia porco na salgadeira. Vivia pobre o tio Amarante, e ainda por cima se riam dele. Desde épocas remotas até há poucos anos, era a Gafanha largo e abundante pascigo para as manadas, sobretudo de touros, que infestavam estas paragens. As da Carapinheira por aqui se demoravam frequentemente. Os pastores, maldosamente e também levados pela fome, perseguiam o tio Amarante, escolhendo para teatro das suas diabruras a vivenda do pobre velho. Repetidamente lhe destruíam a horta, arrombavam a porta e furavam o forno.
Era o forno que sobremaneira atraía estes importunos visitantes, e o tio Amarante todas as semanas tinha que repetir a fornada e contar com estes improvisados comensais, porque as boroas batiam sempre as asas e passavam do forno para o estômago daqueles pastores. Era um tormento com que não podia compadecer-se a provada paciência do bom velho. A esta desgraça outra maior se juntou. A Câmara de Vagos, com a sua proverbial magreza, também quis espoliar aquele infeliz que nem carne tinha para cobrir os ossos. Era ele um esquelético cabide que mal segurava uns reduzidos e andrajosos farrapos.
Quis ela auferir alguns cobres de foro pelas areias e pela pousada do pobre. Como encontrasse resistência às suas pretensões, mandava-lhe arrasar a choupana. Por várias vezes, teve o pobre homem de se conformar com a violência da autoridade, e construir de novo. Câmara e pastores eram os algozes atrevidos que muito e muito o faziam sofrer, e que mais lhe faziam dissecar as suas já minguadas carnes.
Um dia, porém, aquele pássaro que pretendiam depenar, fixou as penas e bateu as asas. De cuecas, bordão na mão, alforje bem fornecido às costas, seguiu para Lisboa.
Fez-se anunciar no Paço Real e é recebido por Sua Majestade. Antes, porém, de desfiar todo o seu rosário de amarguras, ajoelha para beijar a mão real. Não é consentida comovedoramente a reverência a quem tão humildemente se apresenta nos Paços Reais. Ouvida a queixa e o pedido de providências, é mandado em paz com a promessa de deferimento.
Efectivamente a Câmara recebe ordens terminantes que garantiam ao Amarante a posse tranquila de uma grande extensão de terreno, livre de quaisquer encargos. É aquele terreno (agora subdividido) que constituiu a chamada “Quinta do Amarante”.
Foi a única quinta da Gafanha que nunca pagou foro por munificência régia, a pedido do Amarante que, de ceroulas curtas e de sacola às costas, foi a pé a Lisboa falar a Sua Majestade. Estes acontecimentos deram-se por cerca do ano 1800, ou ainda antes, e o facto ainda hoje se relata com frequência.»
Ora digam lá que esta estória não valeu bem os minutos que demorou a ler?!
Manuel
«João Amarante, de proveniência incerta, veio de abalada por aí fora até poisar na charneca paulenta da Gafanha, a uns 200 metros ao sul da actual estrada de Ílhavo para a Costa Nova. Mal tratado pela fome, lá ia remexendo a areia, a ver se dela podia colheitar algumas batatas e ervilhas que lhe enchessem o estômago e lhe cobrissem os ossos. Mas aquela magreira não se debelava, nem pela polpa dos caranguejos, nem pelas caldeiradas dos barbudos camarões.
A necessidade obrigava-o a arrotear a improdutiva areia. Destruída a primeira barraca de madeira, surgiu uma nova construção de barro, mais sólida, que ele preventivamente cercava de junqueiras para arrostar a inclemente invasão das areias furiosamente tocadas dos ventos. Por algum tempo viveu feliz o tio Amarante com as caldeiradas de batatas condimentadas com os caranguejos e camarões.
Eram assim as caldeiradas dos pobres, à falta da saborosa enguia ou do delicioso peixe do mar. As ervilhas e as favas eram um repasto mais reconfortante para a hora do meio dia. Pouco lhe aproveitavam as marinhas além porque não havia porco na salgadeira. Vivia pobre o tio Amarante, e ainda por cima se riam dele. Desde épocas remotas até há poucos anos, era a Gafanha largo e abundante pascigo para as manadas, sobretudo de touros, que infestavam estas paragens. As da Carapinheira por aqui se demoravam frequentemente. Os pastores, maldosamente e também levados pela fome, perseguiam o tio Amarante, escolhendo para teatro das suas diabruras a vivenda do pobre velho. Repetidamente lhe destruíam a horta, arrombavam a porta e furavam o forno.
Era o forno que sobremaneira atraía estes importunos visitantes, e o tio Amarante todas as semanas tinha que repetir a fornada e contar com estes improvisados comensais, porque as boroas batiam sempre as asas e passavam do forno para o estômago daqueles pastores. Era um tormento com que não podia compadecer-se a provada paciência do bom velho. A esta desgraça outra maior se juntou. A Câmara de Vagos, com a sua proverbial magreza, também quis espoliar aquele infeliz que nem carne tinha para cobrir os ossos. Era ele um esquelético cabide que mal segurava uns reduzidos e andrajosos farrapos.
Quis ela auferir alguns cobres de foro pelas areias e pela pousada do pobre. Como encontrasse resistência às suas pretensões, mandava-lhe arrasar a choupana. Por várias vezes, teve o pobre homem de se conformar com a violência da autoridade, e construir de novo. Câmara e pastores eram os algozes atrevidos que muito e muito o faziam sofrer, e que mais lhe faziam dissecar as suas já minguadas carnes.
Um dia, porém, aquele pássaro que pretendiam depenar, fixou as penas e bateu as asas. De cuecas, bordão na mão, alforje bem fornecido às costas, seguiu para Lisboa.
Fez-se anunciar no Paço Real e é recebido por Sua Majestade. Antes, porém, de desfiar todo o seu rosário de amarguras, ajoelha para beijar a mão real. Não é consentida comovedoramente a reverência a quem tão humildemente se apresenta nos Paços Reais. Ouvida a queixa e o pedido de providências, é mandado em paz com a promessa de deferimento.
Efectivamente a Câmara recebe ordens terminantes que garantiam ao Amarante a posse tranquila de uma grande extensão de terreno, livre de quaisquer encargos. É aquele terreno (agora subdividido) que constituiu a chamada “Quinta do Amarante”.
Foi a única quinta da Gafanha que nunca pagou foro por munificência régia, a pedido do Amarante que, de ceroulas curtas e de sacola às costas, foi a pé a Lisboa falar a Sua Majestade. Estes acontecimentos deram-se por cerca do ano 1800, ou ainda antes, e o facto ainda hoje se relata com frequência.»
Ora digam lá que esta estória não valeu bem os minutos que demorou a ler?!
Manuel