Crónica de Guilherme de Oliveira Martins
no DN
Temos na memória a afirmação de Camilo Castelo Branco: “Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue, o pão de uma família. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas da cegueira. E eu escrevia, escrevia sempre”. Foi ele o primeiro dos nossos profissionais da escrita, deixando-nos milhares de páginas inolvidáveis de pura literatura escritas na universal língua portuguesa. Ele próprio protagonista de uma vida cheia e atribulada, soube tornar o Portugal profundo, pleno de contradições e dúvidas, o principal protagonista da sua obra. Eis por que é difícil registá-lo numa escola ou numa tendência. Não por acaso, encontrando-o na Cadeia da Relação do Porto, onde cumpria uma estranha pena, o rei D. Pedro V, de que Ruben A. disse ser o primeiro homem moderno que houve em Portugal, deixou clara a admiração pelo homem de cultura, desejando vê-lo depressa libertado. Falo de Camilo pela admiração que lhe tenho, mas também pelo facto de não me ter deixado arregimentar em agremiações de devotos. É um romancista maior, a que regressamos sempre com muito gosto e proveito. E o seu vocabulário é algo de extraordinário, o que levou Castilho a dizer: “Que colheita que tenho feito para o Dicionário português nestes seus últimos livros! Se se perdessem todos os nossos clássicos ficando só as obras de V. Exª a vernaculidade nada tinha perdido”. Não há maior elogio, porque Camilo foi, além de grande escritor, um grande leitor, um grande erudito, alguém que soube ouvir como se falava o português vulgar nas paragens mais recônditas.