Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
1. Ainda não sabemos se o diálogo evitará a tragédia da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, dois países de tradição cristã. Não nos fazia mal nenhum revisitar os começos da história cristã que muitos só conhecem com os pedacinhos dos Evangelhos das missas de Domingo e alguns nem isso. Católicos ou não, crentes ou não crentes, vivemos todos sob a ameaça da guerra ou dos seus efeitos, globais e locais. O mapa dos conflitos, das guerras e das ameaças de mais conflitos e mais guerras, e das suas consequências, está sempre a refazer-se e é medonho. Mas dizer que sempre assim foi e sempre assim será é colaborar na “cultura da indiferença”. É sobretudo um insulto à nossa condição. Somos seres históricos para o bem a realizar e para o mal a evitar. O determinismo não é humano nem cristão.
O grande livro, A arte de viver em Deus, de Timothy Radcliffe, tem um capítulo sobre a imaginação não-violenta. É um percurso exemplar sobre a não-violência e as guerras, ao longo da história do Cristianismo. Deixo aqui apenas algumas referências [1].
Jesus cresceu numa terra que fervia de violência contra a violência dos ocupantes romanos. Os seus contemporâneos rezavam pela destruição dos seus opressores. Os discípulos, que o acompanharam até Jerusalém, confiavam que Ele, provavelmente, suscitaria uma rebelião. Mas, quando a crise chegou, Jesus recusou abraçá-la. Ficaram perplexos e desapontados. Talvez tenha sido esse facto que impeliu Judas à traição. Os discípulos, a caminho de Emaús, lamentam-se a um estranho que os surpreendeu: esperávamos que fosse Ele o que viria redimir Israel (Lc 24, 21). Não tinham entendido o alcance do ensinamento do Mestre. Hoje, também poucos cristãos seguem o seu radicalismo.
Nos primeiros séculos, a conversão a Jesus Cristo implicava a rejeição de toda a violência. Os cristãos negaram-se a participar na rebelião do ano 70. Durante os três primeiros séculos, com poucas excepções, recusaram-se a servir o exército ou a aceitar qualquer cargo que pudesse envolver a aplicação da pena de morte. Os soldados que eram baptizados depunham as suas armas – o que redundava, muitas vezes, no próprio martírio. O mártir S. Justino, que morreu cerca do ano 165, escreveu: nós, que estávamos fartos de guerra, de mútua chacina e de toda a maldade, transformamos os nossos instrumentos de guerra: as nossas espadas em arados e as nossas lanças em alfaias de agricultura. Cultivávamos a piedade, a justiça, o amor da humanidade, a fé e a esperança.
S. Maximiliano foi decapitado por se ter negado a fazer parte do exército romano. Quando foi julgado declarou: não posso servir o exército. Não posso praticar o mal. Não serei um soldado deste mundo. Sou um soldado de Cristo. O sim ao Deus da vida era um não indiscutível à violência.
Depois da conversão de Constantino (312) [2], esse radicalismo foi esmorecendo. A partir de Santo Agostinho (séc. V), passou a discutir-se sobre a guerra justa e injusta. Mais tarde, os soldados foram enviados para os campos de batalha por bispos e papas. Perdia-se a imaginação cristã da não-violência e nem sequer havia uma palavra para ela até ao início do século XX. Foi Mahatma Gandhi que chamou ao seu modo de luta, que travou contra a Inglaterra, prática da não-violência.
Ao dirigir-se às Nações Unidas, em 1965, Paulo VI repetiu praticamente as palavras de Jesus aos seus discípulos: nunca mais a guerra. Se desejais ser cristãos, abandonai as armas. O amor dos inimigos é o âmago da revolução cristã.
O século passado foi, talvez, o mais violento da história humana: os massacres de duas guerras mundiais, a chacina de povos inteiros, desde os arménios, na Turquia, até ao Ruanda. O termo genocídio foi inventado para descrever o holocausto mecânico dos judeus, na Shoah, desenvolvendo toda a eficiência da moderna tecnologia. No século passado, foram lançadas as bombas atómicas sobre Nagasaki e Hiroshima, o assassínio de centenas de milhões de pessoas por Estaline, Mao Tsé-Tung e Pol Pot. Vivemos a ascensão do jihadismo violento, o culto da morte do Daesh, a fúria cega do Boko Haram, a chacina de muçulmanos e de cristãos na Índia, o massacre de crianças nos bairros pobres dos EUA, a violência, ataques e raptos aumentam de novo em Cabo Delgado (Moçambique). Estes surtos de violência horrenda são, frequentemente, descritos como medievais. Infelizmente, são mais típicos da modernidade.
Como diz o citado P. Timothy, se o Cristianismo conseguir influenciar a imaginação dos nossos contemporâneos, será, decerto, mediante a recuperação da não-violência radical de Jesus.
2. No recente diálogo do Papa com Fabio Fazio, no programa televisivo Che tempo che fa, declarou que a guerra é um contrassenso, uma loucura: “na imaginação universal o que conta é a guerra, a venda de armas. Basta pensar que com um ano sem produzir armas se poderia dar de comer e educação a todo o mundo, gratuitamente".
Hoje, na mobilização das economias, o mais importante é a guerra: guerra ideológica, guerra de poderes, guerra comercial e tantas fábricas de armas. Trabalhar a terra, tomar conta dos filhos, manter uma família, fazer a sociedade crescer, é construir. Fazer a guerra é destruir. É mesmo uma mecânica de destruição.
A crescente interdependência e a globalização significam que a resposta que se der à ameaça de armas nucleares deve ser coletiva e planeada, baseada na confiança recíproca, que só pode ser construída através do diálogo sinceramente dirigido para o bem comum e não para a tutela de interesses velados ou particulares. Com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna [3].
Ao voltar à questão dos migrantes, o Papa sublinha: devemos pensar inteligentemente na política migratória, uma política continental. O facto de o Mediterrâneo ser, hoje, o maior cemitério da Europa deve fazer-nos pensar.
3. Não é só o fabrico e o comércio de armas que constituem uma vergonha. Mais vergonhoso ainda é o comércio de seres humanos. Como diz o Papa Francisco [4], o tráfico de pessoas, por meio da exploração doméstica e sexual, devolve violentamente mulheres e meninas ao seu suposto papel de subordinadas à prestação de serviços domésticos e sexuais, ao seu papel de cuidadoras e doadoras de prazer, que repropõe um padrão de relações marcado pelo poder do género masculino sobre o feminino, ainda hoje e ao mais alto nível.
Para combater a cultura da indiferença, instituiu o dia 8 de Fevereiro como Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas. Essa data não está esquecida. Na passada terça-feira, a União Internacional das Superioras e dos Superiores Gerais e a Rede Talitha Kum promoveram uma maratona de oração, de reflexão e de testemunhos contra uma vergonhosa actualidade.
Não à guerra, não à violência!
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. pp. 180-199
[2] Em 313, Constantino reconheceu oficialmente o cristianismo como religião pelo edito de Milão.
[3] Fratelii Tutti, 262
[4] Mensagem do Papa para o Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas, 7.02.2022