«Estou convencido de que o bispo de Bragança não é caso único. Mas é um excelente exemplo da Igreja em saída, que olha para o Céu, com os pés assentes na Terra, distribuindo “carícias de Deus”. Para que se concretize um mundo melhor.»
1. Hoje celebra-se, na liturgia católica, a festa da Ascensão de Jesus ao Céu. Evidentemente, quando se fala em ascensão, não se está a fazer descrições geográficas; trata-se tão-só de tentar expressar simbolicamente que Jesus entrou na plenitude da Vida que é Deus.
Antes da despedida, prometeu aos discípulos o Espírito Santo, o Espírito de Deus, que é Amor, aquela luz e força que ilumina, vivifica, dá ânimo, consolação, confiança, coragem. E disse-lhes, segundo os Actos dos Apóstolos, de São Lucas: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo.” Desapareceu da sua vista e “como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: “Porque estais assim a olhar para o céu?” E observou-lhes que agora a sua missão era partir, para cumprir a missão que Jesus lhes entregara.
Esta é a missão da Igreja. Sim, olhar para o Céu, anunciar o sentido da vida, o Sentido último da existência humana, que não caminha para o nada, mas para a plenitude da Vida em Deus. A missão da Igreja, essencial, é ser a multinacional do sentido de todos os sentidos, do Sentido último. Ao mesmo tempo, e por isso mesmo, não pode ficar parada a olhar para o Céu. Não pode abandonar o mundo, a Terra, criação de Deus. É aqui que vivemos e a missão da Igreja é continuar o projecto de Jesus, concretizá-lo, aqui, porque queremos, como é desígnio de Jesus, viver num mundo que é de todos e que deve ser para todos, na justiça, na igualdade radical, na dignidade livre e na liberdade digna, num mundo onde todos possam viver em paz e realizar a sua dignidade humana e divina.
A missão da Igreja tem esta dupla vertente: olhar, na Terra, para o Céu. A igreja de Marco de Canavezes, de Siza Vieira, di-lo como só um artista o sabe dizer. Tem uma porta com 10 metros de altura e, quando se sai da celebração, ela abre-se e continuamos com os pés assentes na Terra, mas, diante de nós, abre-se o Céu.
2. Durante muito tempo, impôs-se uma espiritualidade de fuga do mundo, desprezo e abandono do mundo, esquecendo que ele é, repito, criação de Deus e é nele que é preciso encontrar Deus, uns com os outros. Mas também é preciso transformar o mundo. Porque o mundo, no Evangelho, aparece num duplo sentido: por um lado, no sentido positivo, ele é criação de Deus; por outro, no sentido negativo, ele pode ser lugar da tentação, pode ser sujo. Por isso, há o contraponto entre cosmos, que significa, em grego, belo (donde vem cosmética?), e caos, o seu contrário: a desordem; e mundo (limpo, belo, universo), que tem o seu oposto em i-mundo. Não é necessário limpar o mundo, também o mundo humano, das suas imundícies? A vida humana e, consequentemente, a vida cristã também, são e estão, portanto, continuamente em tensão.
Também a Igreja enquanto organização necessita de limpeza. Morreu, em Tóquio, na passada Quinta-Feira, dia 20 de Maio, o Padre Adolfo Nicolás, antigo superior-geral dos jesuítas. Num texto emocionado, José M. Castillo, revela como no seu último encontro, em Roma, poucos dias antes de se saber da renúncia ao papado de Bento XVI, quando se estavam a despedir, ele lhe disse algo que o marcou profundamente: “Reza, reza muito pela Igreja. Porque para pior do que está agora não creio que possa cair”. E aí está Francisco a dar uma viragem à Igreja, apesar de todas as resistências. E o problema são mesmo as resistências. Numa entrevista recente, o conhecido vaticanista Marco Politi, afirmou: “Não são uma minoria. 30% do clero, dos bispos e dos leigos mais comprometidos no mundo estão contra Francisco. Há uma parte da Igreja que não está de acordo com Francisco e que está já a tratar de influenciar o próximo conclave. Nunca houve tantos ataques contra um Papa.”
Com a presente pandemia, tomámos consciência de muitas realidades de que andávamos muito afastados. Uma delas é que precisamos de atender à natureza, aos ecossistemas, à biodiversidade, à “ecologia integral” de que fala Francisco, precisamos de viver com mais moderação, e a Igreja, concretamente, uma vez que tem de dar o exemplo, não pode continuar no luxo ou a utilizar símbolos, mesmo na liturgia, que não são senão sinais de poder e ostentação. Impõe-se viver com simplicidade, segundo o estilo de Jesus. Nesse sentido e para dar um exemplo apenas, a irmã Mercedes Loring, de 95 anos, religiosa da Assunção, sugeriu: “Seria possível pedir ao Papa que acabe com as mitras dos bispos, inúteis, e que dão a impressão de ‘alta categoria’? Fico mal humorada, quando vejo uma cerimónia religiosa, sobretudo a Eucaristia, e o bispo com mitra. Ou quando vejo um grupo de bispos, todos com as suas mitras! Não consigo imaginar Jesus com essas pretensões.”
Já depois de este pedido se ter tornado viral, a irmã Mercedes Loring, que dedicou a sua vida à promoção dos pobres, voltou à carga, em diálogo com José Manuel Vidal, director de Religión Digital: “As mitras episcopais sempre me pareceram ridículas. Agora, com o confinamento, participei em muitas Missas pela internet, algumas presididas por bispos, todos eles com a mitra. E o antigo mal-estar voltou. Aquele tira e põe da mitra parece-me ridículo.” Acrescentou: “Se pudesse realizar o sonho de ver o Papa, dir-lhe-ia que acabasse com a mitra para ele e também para os bispos.”
É claro que Francisco não vai satisfazer o pedido da irmã Mercedes, pois não pode arranjar mais um problema, ele que já tem tantos. Há pouco tempo, encontrou o Padre Ángel, um exemplo notabilíssimo de cuidador atento e eficiente dos mais pobres e frágeis. O Papa perguntou-lhe: “Como estás, Ángel?” Resposta: “Vou indo, com os meus problemas.” “E tu?” Francisco: “Os meus problemas? Nem te falo...”.
De qualquer forma, fica aí o eco do pedido da irmã Mercedes, com 95 anos. Para exemplo, um extracto de um poema do célebre bispo-poeta Pedro Casaldáliga, também ele nonagenário (92 anos): “A tua MITRA será um chapéu de palha sertanejo. / O teu BÁCULO será a verdade do Evangelho/ e a confiança do teu povo em ti. / O teu ANEL será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador/ e a fidelidade ao povo desta terra. / Não terás outro ESCUDO/ para lá da Esperança/ e da liberdade dos filhos de Deus.”
3. Há muito pouco tempo, telefonei ao bispo de Bragança-Miranda, José Cordeiro. Para lhe manifestar a minha total simpatia. Porque vi no JN uma reportagem da jornalista Glória Lopes sobre ele, vestido normalmente e, como se impõe, com a máscara, a distribuir nas ruas alimentos e remédios a quem necessita. Leva também, e talvez seja por vezes o mais importante e necessário, palavras de conforto, “uma carícia de Deus”, como ele diz, neste tempo de pandemia, quando as pessoas se sentem mais sós e tristes. Fá-lo duas vezes por semana, indo ao encontro não só de pessoas mais velhas, mas também de migrantes e alunos estrangeiros do Instituto Politécnico de Bragança. “Eu senti o dever de acompanhar o trabalho da Cáritas Diocesana como um sinal em toda a Diocese, pois não posso acompanhar todas as instituições. Esta crise sanitária transformou-se rapidamente numa crise económica e social”, sublinhando que “não se trata de caridadezinha, mas de um amor em saída (aqui, lembro que Francisco não se cansa de repetir que quer “uma Igreja em saída”), para sermos solidários e de ir para o terreno “para estar junto das pessoas e dizer-lhes que não podemos ter medo”.
Estou convencido de que o bispo de Bragança não é caso único. Mas é um excelente exemplo da Igreja em saída, que olha para o Céu, com os pés assentes na Terra, distribuindo “carícias de Deus”. Para que se concretize um mundo melhor.
Anselmo Borges no DN