Papa com Núncios (Foto do Vaticano) |
1. A Igreja tem dentro dela, inevitavelmente, uma tensão, que a conduz a um paradoxo. Esta tensão e este paradoxo foram descritos de modo penetrante, preciso e límpido pelo sociólogo Olivier Robineau, nestes termos: “A Igreja Católica é uma junção paradoxal de dois elementos opostos por natureza: uma convicção — o descentramento segundo o amor — e um chefe supremo dirigindo uma instituição hierárquica e centralizada segundo um direito unificador, o direito canónico. De um lado, a crença no invisível Deus-Amor; do outro, um aparelho político e jurídico à procura de visibilidade. O Deus do descentramento dos corações que caminha ao lado de uma máquina dogmática centralizadora. O discurso que enaltece uma alteridade gratuita coexiste com o controlo social das almas da civilização paroquial — de que a confissão é o arquétipo — colocado sob a autoridade do Papa. Numa palavra, a antropologia católica tenta associar os extremos: a graça abundante e o cálculo estratégico. Isso dá lugar tanto a São Francisco de Assis como a Torquemada.”
2. É com este paradoxo que o Papa Francisco tem de conviver, ao mesmo tempo que tem feito o seu melhor para dar o primado ao Evangelho, ao Deus-Amor, para que a Igreja enquanto instituição — e é inevitável um mínimo de organização institucional — não atraiçoe a Boa Nova de Jesus. Ele é cristão, no sentido mais profundo da palavra: discípulo de Jesus, e quer que todos na Igreja se tornem cristãos, a começar pela hierarquia.
Assim, tem denunciado as doenças da Cúria, avisa os bispos e cardeais para que não sejam príncipes, anuncia para breve uma nova Constituição para a Cúria, o governo central da Igreja. Também neste contexto, convocou recentemente para o Vaticano os Núncios do mundo inteiro. As nunciaturas, embaixadas da Santa Sé junto dos governos e das Igrejas locais, são uma herança histórica discutível, mas podem ter um papel decisivamente positivo no mundo para estabelecer pontes a favor da justiça, do desenvolvimento, da paz.
Nesse encontro, com a presença de núncios e delegados apostólicos em 193 países e organizações internacionais, o Papa Francisco, dirigindo-se-lhes directamente, avisou: “Estou contente por encontrar-vos de novo para ver convosco e examinarmos com olhos de pastores a vida da Igreja e reflectirmos sobre a vossa delicada e importante missão”. Acrescentou: “Pensei partilhar hoje convosco alguns preceitos simples e elementares; trata-se de uma espécie de ‘decálogo’, que, na realidade, é dirigido, através de vós, também aos vossos colaboradores e ainda a todos os bispos, sacerdotes e consagrados que encontrais em todas as partes do mundo.”
3. O que aí fica é uma breve síntese desse decálogo.
3. 1. O núncio é um homem de Deus.
Ser um homem de Deus significa “seguir Deus em tudo e para tudo”. O homem de Deus “não engana nem defrauda o seu próximo”.
3. 2. O núncio é um homem de Igreja.
“Sendo um Representante Pontifício, o núncio, não se representa a si mesmo, mas a Igreja e em particular o Sucessor de Pedro, o Papa.” Por isso, “é feio ver um núncio que procura o luxo, as vestimentas e os objectos ‘de marca’ no meio de pessoas sem o necessário. É um contra-testemunho. A maior honra para um homem da Igreja é ser ‘servo de todos’.” “Ser um homem da Igreja significa defender com coragem a Igreja perante as forças do mal que permanentemente procuram desacreditá-la, difamá-la, caluniá-la.”
3. 3. O núncio é um homem de zelo apostólico.
Ele é “o anunciador da Boa Nova e, sendo apóstolo do Evangelho, tem a tarefa de iluminar o mundo com a luz de Jesus ressuscitado, levando-o aos confins da Terra.” “Quem se encontra com ele deveria sentir-se interpelado de alguma maneira.” Não se pode esquecer de que “a indiferença é uma doença quase epidémica que se está a propagar em várias formas, não só entre os fiéis em geral, mas também entre os membros dos institutos religiosos.”
3. 4. O núncio é um homem de reconciliação.
Parte importante do trabalho de todo o núncio é “ser homem de mediação, de comunhão, de diálogo e de reconciliação. O núncio deve procurar ser imparcial e objectivo, para que todas as partes encontrem nele o árbitro correcto que procura sinceramente defender e proteger só a justiça e a paz, sem se deixar influenciar negativamente. Se um núncio se fechasse na sua nunciatura e evitasse encontrar-se com as pessoas, atraiçoaria a sua missão e, em vez de ser factor de comunhão e reconciliação, converter-se-ia em obstáculo e impedimento. Não deve esquecer nunca que representa o rosto da catolicidade e a universalidade da Igreja nas Igrejas locais espalhadas por todo o mundo e perante os governos.”
3. 5. O núncio é um homem do Papa.
Não se representa a si mesmo, mas o Sucessor de Pedro, o Papa, e “age em seu nome perante a Igreja e os governos.” Aqui, Francisco, certamente pensando também no ex-núncio Viganò, concluiu: “Portanto, é irreconciliável ser um Representante pontifício e criticar o Papa por trás, ter blogues e unir-se, inclusivamente, a grupos que lhe são hostis, a ele, à Cúria e à Igreja de Roma.”
3. 6. O núncio é um homem de iniciativa.
“É necessário ter e desenvolver a capacidade e a agilidade para promover e adoptar um comportamento adequado às necessidades do momento, sem cair nunca na rigidez mental, espiritual e humana ou na flexibilidade hipócrita e de camaleão. Não se trata de ser oportunista”, mas de saber passar do ideal à sua implementação concreta, “tendo em conta o bem comum e a lealdade ao mandato.”
3. 7. O núncio é um homem de obediência.
Sim, de obediência, mas sabendo que “a obediência é inseparável da liberdade, porque só em liberdade podemos obedecer realmente, e só obedecendo ao Evangelho podemos entrar na plenitude da liberdade.”
3. 8. O núncio é um homem de oração.
“O Senhor é o bem que não defrauda, o único que não defrauda. E isto requer um desapego de si mesmo que só se pode conseguir com uma relação constante com Ele e a unificação da vida à volta de Jesus Cristo.”
3. 9. O núncio é um homem de caridade activa.
É necessário sublinhar permanentemente que “a oração, o caminho do discipulado de Cristo e a conversão encontram na caridade actuante a prova da sua autenticidade evangélica. E desta forma de vida deriva a alegria e a serenidade mental, porque, nos outros, se toca com a mão a carne de Cristo.”
A caridade também é gratuita. Por isso, Francisco, aqui, adverte para “o perigo permanente das regalias. A Bíblia define como iníquo o homem que ‘aceita presentes por debaixo da mesa, para desviar o curso da justiça’. A caridade activa deve levar-nos a ser prudentes na hora de aceitar os presentes que nos oferecem para ofuscar a nossa objectividade e, nalguns casos, desgraçadamente, para comprar a nossa liberdade. Que nenhum presente nos escravize! Recusai os presentes demasiado caros e frequentemente inúteis ou enviai-os para obras de caridade e nunca esqueçais que receber um presente caro nunca justifica o seu uso.”
3. 10. O núncio é homem de humildade.
Francisco concluiu, apelando para a virtude da humildade: “Jesus manso e humilde de coração, faz o meu coração parecido com o teu.”