no PÚBLICO
«Nunca posso deixar de sorrir quando alguns católicos trazem ou pedem para trazer água do rio Jordão para o baptismo dos filhos ou dos netos, como se ela fosse dotada de especiais virtudes. O futuro de Jesus não veio dessa água, mas de um banho no Espírito recriador do mundo, a essência do baptismo cristão.»
1. A festa litúrgica da Ascensão, neste Domingo, é uma celebração de humor provocado pelo começo do segundo volume de uma obra atribuída a S. Lucas, os Actos dos Apóstolos (Act.), um livro de aventuras que seria uma tentação para a banda desenhada, se as leituras piedosas e convencionais não travassem a imaginação recriadora.
Na verdade, a grande pintura de Fra Angelico, Mantegna, Rembrandt, etc., não perderam o cenário criado por S. Lucas. O músico revolucionário do séc. XX, Olivier Messiaen, compôs L’Ascension, uma impressionante meditação sinfónica.
Este evangelista, no primeiro volume da sua obra, já tinha apresentado o que acontecera a Jesus de Nazaré, depois da sua impressionante ruptura com a ideologia e o método de austeridade de João Baptista.
É verdade que este tinha sido o seu mestre extraordinariamente admirado, a quem havia seguido com fervor e por quem fora baptizado, no rio Jordão, mas acabou por se dar conta que o moralismo era demasiado curto para a revolução que se impunha.
A experiência mística, depois do rito baptismal no Jordão, surgiu como uma iluminação que mudou completamente o rumo da sua vida. Já não conseguia rever-se no Deus da ameaça do seu antigo mestre, mas na Voz que o declarava um fruto do puro Amor.
Nunca posso deixar de sorrir quando alguns católicos trazem ou pedem para trazer água do rio Jordão para o baptismo dos filhos ou dos netos, como se ela fosse dotada de especiais virtudes. O futuro de Jesus não veio dessa água, mas de um banho no Espírito recriador do mundo, a essência do baptismo cristão.
O Evangelho segundo S. Lucas termina na viagem surrealista dos tristes discípulos de Emaús (Lc 24,13-34). São eles que explicam a um estranho e distraído forasteiro (o próprio Mestre) o que naqueles trágicos dias tinha acontecido, em Jerusalém, a Jesus, o nazareno. As mulheres tinham lançado o boato de que ele estava vivo, mas ao certo, ninguém o viu!
Nessa narrativa hilariante, não vêem o Mestre enquanto o vêem; quando o reconhecem, ele torna-se invisível. Lucas não escreve uma história do passado, mas o instante presente da fé dos discípulos de Jesus, sem termo à vista.
2. O autor dos Act. reforçou o seu pendor surrealista. Depois da ressurreição, Cristo vive com os discípulos. S. Lucas recria cenários, qual deles o mais absurdo, para mostrar que a presença de Cristo nunca foi tão real, mas também nunca foi tão clandestina: uma presença sob forma de ausência e uma ausência sob forma de presença.
Para destacar esse paradoxo, o escritor sente a urgência em fazer entrar outro personagem em cena, realçando a proverbial incapacidade dos discípulos em entenderem o Mestre, devido à obsessão pelo poder: “Estando reunidos perguntaram-lhe: Senhor, será agora que vais restaurar a realeza em Israel?”
Jesus mostra-se aborrecido e esgotado. Já não aguenta mais: recebereis a força do Espírito e sereis minhas testemunhas até aos confins da terra. Lucas cria logo um cenário radical: dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem escondeu-o!
Em vez de cumprirem a ordem de Cristo, ficaram pasmados a olhar para o céu, esquecendo a terra e a missão. No Evangelho de S. Mateus, referido na liturgia de hoje, o cenário não é muito diferente. Reuniram-se todos para a despedida, e quando O viram adoraram-no; mas não todos. Alguns continuaram com as suas dúvidas.
Jesus, o Ressuscitado, já não está para mais explicações. A única coisa que garante é que ficará sempre com eles até ao fim dos tempos e manda- -os em missão. Não andam por conta própria, mas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Jesus cansou-se, mas não foi para férias como certas fórmulas podem sugerir: sentado à direita de Deus Pai. Teria deixado tudo arrumado, uma igreja organizada para cumprir um mandato de há mais de 2000 anos. Pura ilusão! Jesus não criou um museu, nem ordenou os seus conservadores nem os cicerones, os que guardam o depósito da Fé e sabem o que lá existe e não existe. Os polícias da ortodoxia.
Uma interpretação dessas tem um pequeno inconveniente: esquece o Espírito Santo que desarrumou a vida a Jesus e que desarrumará a vida da Igreja, até ao fim dos tempos. O Espírito Santo não é propriamente um burocrata, mas disso falaremos no Pentecostes.
3. O papa Francisco não é Deus, não é Jesus Cristo, nem é ele a Igreja. Surgiu e foi logo interpretado como alguém apostado em enfrentar reformas, há muito adiadas: a da Cúria Romana, do Banco do Vaticano, do carreirismo eclesiástico, da atração pelo fausto e o seu exibicionismo e liquidar o crime de cobertura à pedofilia.
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