Por Anselmo Borges
"Depois da queda do comunismo, alguns pensaram que se poderia conseguir o paraíso na terra com um capitalismo desenfreado. As forças auto-reguladoras do mercado à escala mundial trariam por si mesmas o bem-estar para todos ou, pelo menos, para a maioria. A realidade é muito diferente. Foi a cobiça de homens concretos que provocou a actual crise financeira mundial, cujas consequências, mais uma vez, os pobres e os mais pobres dos pobres têm de pagar com a sua vida, a sua saúde, a morte prematura e todas as perspectivas perdidas, previstas por Deus para eles."
Uma vez, num seminário na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, um juiz perguntou-me o que é que eu pensava sobre a teologia da libertação. Disse-lhe: "Permita que lhe responda com uma pergunta: o que pensa o senhor sobre a teologia da opressão?"
Percebe-se. Se a teologia não for teologia da libertação, não será urgente bani-la, excomungá-la? Mas ele referia-se, evidentemente, a um tipo de teologia que dá por esse nome e que quer trabalhar e pensar a partir e ao serviço dos mais pobres, passando, portanto, de um cristianismo "sacral" a um cristianismo "social", e à qual o cardeal Joseph Ratzinger teceu fortes reservas.
Em 1972, foi o livro do teólogo G. Gutiérrez, Teologia da Libertação, que acabou por consagrar o seu nome. Em 1983, Ratzinger enviou à Conferência Episcopal do Peru observações críticas sobre a teologia de Gutiérrez, acusando-o concretamente de utilizar um método de interpretação marxista, fazer uma leitura parcial dos textos bíblicos e pôr o acento na economia e na política, não acautelando suficientemente a realidade religiosa e transcendente do Reino de Deus. Os bispos do Peru foram chamados a Roma em 1985 e pressionados para que o condenassem. A condenação não aconteceu, pois, como conta o teólogo X. Pikaza, foram vários a dizer que não tinha sentido "obrigá-los" a condenar um irmão crente comprometido com os pobres.
O singular nesta história é o alemão Gerhard L. Müller, que foi catedrático de Teologia na Universidade de Munique, bispo de Ratisbona desde 2002 e que, em substituição do norte-americano William Levada, que abandona o cargo por motivos de idade, acaba de ser nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o organismo responsável pela vigilância da ortodoxia. Müller não esconde a sua amizade com Gutiérrez e, por isso, há quem chegue a pensar que esta nomeação é uma espécie de reparação de J. Ratzinger.
Müller escreveu: "A teologia da libertação está para mim unida ao rosto de Gustavo Gutiérrez." Em 1988, participou num seminário dirigido por ele, e confessa: "Operou-se em mim uma viragem na reflexão académica sobre uma nova concepção teológica dirigida para a experiência com as pessoas para as quais tinha sido desenvolvida essa teologia."
E pergunta: "Como se pode falar de Deus perante o sofrimento humano dos pobres, que não têm sustento para os filhos nem direito a assistência médica nem acesso à educação, excluídos da vida social e cultural, marginalizados e considerados um fardo e uma ameaça para o estilo de vida de uns poucos ricos?" A teologia de Gutiérrez "é ortodoxa, porque é ortoprática".
Durante 15 anos passou 2 ou 3 meses por ano na América Latina, vivendo em condições muito simples, o que, como confessa, "para um cidadão da Europa central implica um grande esforço". Mas isso marcou-o profundamente e, assim, é inclemente na condenação do capitalismo neoliberal, cuja expressão sem escrúpulos são os vulture funds. "Depois da queda do comunismo, alguns pensaram que se poderia conseguir o paraíso na terra com um capitalismo desenfreado. As forças auto-reguladoras do mercado à escala mundial trariam por si mesmas o bem-estar para todos ou, pelo menos, para a maioria. A realidade é muito diferente. Foi a cobiça de homens concretos que provocou a actual crise financeira mundial, cujas consequências, mais uma vez, os pobres e os mais pobres dos pobres têm de pagar com a sua vida, a sua saúde, a morte prematura e todas as perspectivas perdidas, previstas por Deus para eles."
Deu recentemente uma entrevista ao Osservatore Romano, onde reafirma que é necessário "distinguir entre uma teologia da libertação equivocada e outra correcta", mas "qualquer teologia boa tem que ver com a liberdade e a glória dos filhos de Deus".
A sua chegada ao Vaticano não significa uma revolução - também foi prevenindo contra a "ordenação" das mulheres -, mas pode ser um bom sinal. Quer, com Paulo VI, que o aspecto positivo esteja em primeiro plano na Congregação para a Doutrina da Fé: "Ela deve, sobretudo, promover e tornar compreensível a fé, e este é o factor decisivo."