quinta-feira, 14 de junho de 2012

Bucólica


Por Maria Donzília Almeida 


No bosque

Bucólica 


A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento; 
(...) 

Miguel Torga (1907-1995) 
Escrito em S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937

Reinava a paz dos bichos, na Quinta do Briol. Granjeara o nome da sua situação geográfica, virada a norte e das nortadas que ali se fazem sentir, no inverno. Ali, próximo... da Quinta das Brisas. De permeio, apenas uma avenida e meia dúzia de ruas e ruelas. Reminiscências de um ambiente rural. 
Habitavam a quinta, apenas as sobreviventes da lei da naifa – 4 galinhas pedreses, velhas, de carnes duras, pelo tempo e pelo alimento farto que a dona lhes prodigalizava. Passeava-se, também, por lá, uma aspirante a galinha, mas que não passava de uma amostra de galináceo – uma garnizé! Também as rolas, os melros e raramente um cuco de dorso listrado, por ali paravam no seu voo de reconhecimento. 
Tempos áureos para a quinta, aqueles em que cabrinhas anãs faziam o deleite dos transeuntes! Era o casal Bamby/Miura que foram tão felizes no seu habitat. A maldade dos homens desfez aquilo que Deus unira e o Bamby perdeu a sua companheira. Em segundas núpcias, ele e a Lia trouxeram ao mundo dois novos rebentos que por cá nasceram e foram batizados: duas cabrinhas de palmo e meio: a Benilde e a Marília. No bosque, cresceram, cabriolaram, seguiram as pisadas dos pais. Pulavam e comiam tudo o que lhes aparecia pela frente. Os pinheiros, esses não gostavam muito das insistentes investidas daquelas boquinhas pontiagudas, que apesar de serem pequenas, iam fazendo os seus estragos! Não chegaram a derramar lágrimas de resina, mas com o tempo, chegariam ao pranto!

Entre redes

O Bamby teve uma existência muito agitada, pois as vicissitudes da vida fizeram com que ficasse viúvo, duas vezes, num curto espaço de tempo. Foi uma dor de alma para quem presenciava, assistir àquela solidão. O bosque ficou mais pobre, sem a vivacidade daquelas salta-pocinhas! 
As galinhas, coitadas, sentiam-se muito solitárias depois de terem levado por diante o complot que as fez matar o galo, com um ataque de apoplexia! Contagiadas pela filosofia do “onde há galos, não cantam galinhas” logo se organizaram para derrubar o tirano! Ele era o senhor do harém e comportava-se como tal! O excesso de trabalho...  trouxe-lhe esse fim inglório. 
Queixava-se a dona, numa loja de comércio local, onde se abastecia do alimento para os pintainhos, recentemente comprados, da falta de um galo, que cumprisse as suas funções de macho e proporcionasse, às galinhas, a possibilidade de chocarem os seus próprios ovos. Já acontecera uma vez e foi preciso a dona pedir ovos galados, à vizinha. 

Cock

Um conterrâneo que assistia, atento, à conversa que despertara o seu interesse, adiantou com firmeza: - Eu dou-lhe um galo! A frase soou algo estranho a quem se referia à falta dum galarós e não levou muito a sério aquela inesperada oferta! Nos dias que correm, cada um vive na sua concha e pouco existe já do espírito de partilha de antigamente. Antes de abandonar a lojinha, o senhor A.V. (sem C), reiterou a sua oferta e até insistiu que a dona das galinhas, sem galo (!?), passasse pela sua casa para o levar. 
Com o decorrer da semana e os múltiplos afazeres e responsabilidades, nunca mais perpassara pela cabeça da “empresária agrícola”, o galo, as galinhas ou a garnizé que está no choco! Esta, com o seu cerebrozinho minúsculo, nem deu conta que a fintaram e lhe colocaram, por baixo, ovos galados, de galinha! Será limitação do intelecto ou, antes, um enorme sentido altruísta, que ainda persiste nas espécies inferiores e as faz dar abrigo e chamar à vida, mesmo os seres de outra espécie? Parece que a diminuição da natalidade já chegou aos galináceos e para procriarem, é preciso recorrer às mães de aluguer! 
Num local que ambos frequentam, ao domingo, no início deste mês, deu-se o encontro com o ofertante do galo: a igreja.... que confere alguma credibilidade, assim se pensa! Esperando que a cerimónia terminasse, aproximou-se da dona dos galináceos e relembrou, persuasivamente a promessa/oferta que fizera, convidando-a a dirigir-se a sua casa, para levar o bicho. Assim foi, chegados lá, abriu a porta do galinheiro e apontou: _Aqui estão, de vários tamanhos e idades, escolha, à sua vontade! Perante tal oferta e sem meios de recusar, pediu-lhe que fosse ele a escolher a seu gosto e para que não ficassem numa troca, estéril, de palavras, solicitou-lhe que lho levasse a casa. Não tardaram muitos minutos, até que o dono do galo, aparecesse na Quinta do Briol, com um belo exemplar, empertigado, todo senhor de si! As galinhas, há tanto tempo, votadas às suas reivindicações feministas, não mostraram grande alarido, com a chegada do novo inquilino. Mas, pouco tempo depois, já se haviam familiarizado com o galarós da quinta, aceitaram a sua supremacia e o jeito dele em lhes arrastar a asa. 

Bichos

Tanta generosidade não é alheia ao facto de a rosa estar inscrita no “brasão de armas” da família da criatura contemplada! 
Esta cena fez recordar aquele velho provérbio: “A quem é boa pessoa, até o vento lhe apanha a lenha”, ou seja, até lhe traz um galo a casa! 
Em retribuição daquela prenda e após ter-se inteirado sobre os hábitos/gostos de leitura do senhor A.V., a feliz contemplada fez-lhe a oferta de um livro. Afinal, amor com amor se paga e... cada um dá o que tem! 
Inquirindo e investigando sobre a ancestralidade do Sr AV, chegou à conclusão que deve ser ainda aparentado (!?) com uma personagem famosa do século XV, o pai do teatro português! 

03.06.2012

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