sábado, 26 de novembro de 2011

Quem pode pôr em dúvida a dramática crise de Deus?


CRISES E OPORTUNIDADES (2)
Anselmo Borges

Como escrevi aqui, no sábado passado, a crise faz parte da realidade. A evolução, desde o Big Bang, há 13 700 milhões de anos, foi deparando com crises e até becos sem saída, mas encontrou oportunidades, foi oportunista: a prova é que estamos cá.
Há transformações que implicam a mudança de paradigma - paradigma é, segundo Th. Kuhn, "an entire constellation of beliefs, values, techniques, and so on, shared by the members of a given community" (uma constelação total de crenças, valores, técnicas, etc., partilhados pelos membros de uma determinada comunidade). Ora, os paradigmas entram em crise. Por exemplo, o paradigma moderno entrou em crise e já se fala em macroparadigma pós-moderno: já não eurocêntrico, pois o mundo tornou-se multipolar; já não androcêntrico, pois tem de haver parceria entre homens e mulheres; a economia de mercado tem de ter sentido social e ecológico; impõe-se o diálogo inter-cultural e inter-religioso...

A crise de que se fala é a crise económico-financeira. Mas, mais uma vez, indo até ao étimo - crise e crítica, do grego "krinein", discernir, explicar, julgar, resolver um litígio, explicar, decidir, e oportunidade, de "opportunitas", ocasião favorável, "opportune", a tempo, "opportunus", que impele para o porto -, não se vê que as crises, vinculadas à crítica, podem ser também oportunidades?

Não provém a presente crise da lógica do capitalismo neoliberal desregulado e da ganância devoradora? Então, no quadro de problemas globais, não precisamos de uma "global Governance", instâncias políticas globais? De uma refundação das Nações Unidas? De um imposto sobre as transacções financeiras? Da regulação dos mercados, essas entidades anónimas destruidoras da vida de milhões e milhões de pessoas? E do fim dos paraísos fiscais? E de ética, melhor, de homens e mulheres éticos na política e na economia?

Aí está a oportunidade para pensar. Não é tempo de reflectir, decidir, procurar o verdadeiro porto? Afinal, valemos sobretudo pelo ter ou pelo ser? Não é o tempo favorável para se exaltar com a existência? E retomar as alegrias simples da beleza de uma simples folha de erva que abana ao vento e de um pôr do Sol a dançar no mar?

De qualquer mo- do, é preciso perceber que o trabalho é um bem escasso, a distribuir equitativamente, e que, num mundo limitado, não é possível um progresso ilimitado. Precisamos de outro modo de viver, no qual a volúpia do consumismo seja substituída pela intensidade da vida, moderada e no seu melhor.

Está aí a crise da Igreja. Mas não implica ela a oportunidade para a conversão? Não tem a Igreja de recentrar-se na mensagem de Jesus: o amor a Deus e o amor solidário e eficaz ao próximo?

Quem pode pôr em dúvida a dramática crise de Deus? Parece confirmar-se o anúncio do louco, que Nietzsche põe a anunciar a morte de Deus. Qual Deus? Não tinha de morrer o deus que envenena e impede a vida e a alegria dos homens e das mulheres, humilhando-os e tolhendo-lhes a existência? Mas o Deus de Jesus é o Deus do amor, que abre horizontes de futuro e de humanização: o seu interesse é a vida expandida e realizada dos homens e das mulheres. Afinal, como disse Heidegger, na sua última entrevista, "só um Deus nos pode salvar". Não anda a humanidade perdida no sem-sentido? Então, não está hoje Deus presente pela sua ausência, porque ele é o sentido de todos os sentidos? Não precisamos de encontrar o sentido último?

A morte é a crise final. Ora, não são as nossas sociedades tecnocientíficas, urbanas, as primeiras, na história da humanidade, a fazer da morte tabu, o último tabu? A crise toda concentra-se e manifesta-se na crise da morte. A nossa sociedade, afundada no ter, no poder, no cálculo, na eficácia, perante a morte, não sabe o que fazer. Uma sociedade poderosíssima nos meios, mas sem verdade e finalidades humanas, faz dela tabu: disso não se fala. Mas, se o pensamento sadio da morte reentrasse, faríamos a tempo o que temos a fazer e saberíamos finalmente distinguir entre o que realmente vale e as ilusões do que não vale e que é causa última da nossa crise.

No DN

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