quinta-feira, 17 de maio de 2007

Um artigo de D. António Marcelino


OS VELHOS REFORMADOS
DAS MARINHAS

De vez em quando, corto a manhã e vou tomar café ao Bairro de Santiago. Ali, na Rua de Espinho, onde também há flores a precisar da água da atenção e do amor. Preciso de ver aquela gente e ela também gosta de me ver. No café onde entro, as ciganas logo cochicham, passam palavra e sorriem a dizer que me conhecem. Eu saúdo, também sorrio, falo, saio desejando um bom dia. No café do Bairro toda a gente se conhece.
Foi no Domingo e a cidade estava mais buliçosa. Era a bênção dos finalistas e via-se gente com ar festivo por todo o lado. Também fui a Santiago. Ao meu café.
Um homem, bem idoso pela aparência, de bengala e boina larga, encostado à parede, acolhia o sol lindo da manhã. Das poucas coisas que os pobres e os velhos podem gozar sem ter de pagar o que quer que seja, ou de pedir licença a quem que seja. Dirigi-me a ele e saudei-o com respeito e carinho. Respondeu-me sorridente, com palavras de quem me conhecia. E de facto conhecia. Deu para falar mais à vontade.
Os chinelos deixavam ver uns pés feridos de sofrimento. Contou-me que foi do sal das marinhas, onde sempre trabalhara ao longo da vida. Pensei que andasse já pelos oitenta e disse-lho. Tinha setenta e três, e recordou-me logo que era mais novo do que eu, adiantando, com a certeza de quem não se enganava, a conta certa da minha idade.
Este encontro inesperado de simplicidade, não conseguiu, porém, esconder um mundo de preocupações que se lhe liam nos olhos e espalhavam sombras no seu rosto. Sim, andava a tratar-se dos pés, coisa grave e morosa, foi dizendo e, também, de uma bronquite crónica, que só aliviava com a bomba para ajudar a respirar. Meteu a mão ao bolso e mostrou. Era mesmo assim.
Morava ali no Bairro com a família. E tal era a pensão de reforma? Indaguei eu. Depois de uma vida longa de trabalho duro, uma miséria de quarenta contos, respondeu. Casa, comida, roupa, remédios… Já viu? Como é isto possível? Ao ouvi-lo, já tinha feito a pergunta a mim mesmo. Já me tinha visto e metido, como pude, na sua pele. Ele é um de muitos, que se vêm por aí ao sol, quando há sol. Como é isto possível?
Teve possibilidade de falar e desabafar. Ficou mais aliviado naquela manhã de Domingo. Não do peso do dia a dia, nem do beco sombrio para onde o empurrara uma vida de luta, depressa esquecida por quem dela beneficiou. O estado dá-lhe agora, em jeito e patrão generoso e por favor, uma esmola que não pode negar, umas pobres migalhas que não dão para o pão.
Partilhamos ali um pouco do nosso tempo e do mais que a vida nos permitiu. Ele, verdade, preocupações e dores. Eu, atenção, amor e respeito e um pouco do meu pão. Ficamos ambos mais ricos, que nem só de dinheiro se enriquece a vida.
Neste dia fazia-se a recolha para o Banco Alimentar contra a Fome. A fome é uma realidade. Fome de pão, de justiça, de respeito, de carinho, de reconhecimento, de uma migalha de atenção de quem passa e pode nem olhar quem está.
Os berços onde se nasce, não são de ouro, como às vezes se diz, nem de madeira tosca, como também acontece. Nasce-se sempre num berço igual. O do colo da mãe que acolhe com alegria o que trouxe escondido no seu ventre. Depois, há berços diferentes, até ao momento em que de novo tudo volta a ser igual, para ricos e pobres.
Naquele Domingo era ainda o Dia a Mãe, a que nunca se esquece, a do amor igual.
Os velhos são um tropeço a dificultar o caminho de quem só vê dinheiro. Dinheiro que os “grandes” recebem aos milhões e os “pobres” aos cêntimos.
A reforma das marinhas é igual a tantas outras de gente que sempre trabalhou no duro. Nunca dará para viver com dignidade e conforto. Mas isso não incomoda os que estão confortados Os pobres não fazem greves. Podiam clamar por pão e, mais ainda, por justiça. Mas uma sociedade apressada não dá pelos injustiçados. Pobres dos pobres!

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