terça-feira, 19 de setembro de 2006

Imagens da Ria

FOI ATRAPALHAÇÃO NA MANOBRA
Tive ontem, pela tarde, a visita do ex-arrais Gabriel Ançan. Está velho. Sempre são setenta e quatro anos de idade, dos quais cinquenta e três de arrais, em seis costas. Mas ainda hoje, à ré de um barco sardinheiro, não faria má figura. É de cerne, o Ançan, e do mais rijo. Nunca esteve doente… Salvou para cima de cento e vinte vidas. Ainda novo, perdida estaria a tripulação da barca francesa Nathalie se não fora ele. A mulher do capitão, desvairada pelo terror, atirou-se do convés para o mar: recebeu-a o Ançan nos braços. “Pesava menos que um lenço de assoar, mas como vinha tocada do alto, ainda me fez arrear um bocado os cotovelos.” … Ainda garoto foi dos que foram buscar a Senhora D. Maria II a Ovar. O Senhor D. Luís qui-lo para seu arrais. “Ainda estou novo, meu Senhor, e aqui não há quem me substitua.” Como intermináveis formalidades burocráticas lhe entravassem, durante três anos, a pensão requerida, tirou-se dos seus cuidados e partiu para Lisboa com dez tostões no bolso… Chegado às Necessidades, respondeu ao familiar de serviço: “Diga a Sua Magestade que é o Ançan, e verá como ele me recebe logo”… E da visita ao Senhor D. Carlos, só lhe ficou o remorso de ter saído de proa, isto é, de costas para o Rei. “Foi atrapalhação na manobra!” Chegou a ver todos os filhos, três, arrais como ele; e era lindo, comovedor e exemplar, ver sair, ao mesmo tempo para o mar, quatro companhas, de quatro Ançans. E se deixou a faina não foi porque já não pudesse fazer-lhe frente. “Ainda me não assusto, mas já não salto para bordo nem acudo às aflições com a prontidão de outros tempos e, tendo levado a vida a salvar gente, não quero arriscar-me a que me salvem a mim”. (Cunha e Costa, Paisagens, perfis e polémicas) In “Geografia de Portugal”, de Amorim Girão : Nota: Foi respeitada a ortografia

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