quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

Um artigo de Alexandre Cruz

Cartoons,
a gota de água
islâmica
1. Tem sido precisa muita água para apagar as chamas ateadas pela fúria. Mas este fogo, infelizmente, já tem longos séculos de história, onde a intolerância e o fanatismo caminham a par de alguns esforços de conciliação e convivência. Estas últimas, atitudes positivas, hoje, num espírito de conhecimento e compreensão, são uma obrigação redobrada na era global, até porque, das duas uma: ou nos vamos conhecendo e entendendo, de parte a parte, ou então cava-se um fosso sem fim à vista. Sendo certo que daqui a um mês este pó já estará acalmado, fazendo correr muita tinta por este mundo fora, todavia, valerá a pena compreender mais, tirar as lições, arriscar conclusões que ofereçam luz sobre modos de agir, respeitar, começando pelo modo de pensar. Para algumas vozes trata-se claramente da continuação da ofensiva islâmica contra o ocidente, no procurar derrubar o razoável sucesso da vivência democrática, ofensiva (internacional despertada por insatisfação de Abu Laban, Imã de Copenhaga, Dinamarca) que tornou ineficiente o apelo pacífico dos próprios líderes religiosos islâmicos, sinal de que estamos bem longe de uma vivência fecunda de diálogo inter-cultural e religioso; outras ideias sublinham a grave não respeitabilidade, por incompreensão cultural nossa em relação aos valores de consciência do mundo árabe, na crítica à liberdade de imprensa sem limites que erradamente faz a sátira do sagrado, como quem brinca com o fogo. Tendo uma e outra postura claras razões lógicas pelos factos que se observam, todavia, sublinhe-se que a desproporcionalidade da reacção islâmica faz vir à luz do dia questões de fundo essenciais. 2. Do ocidente, um pouco desgarrados uns dos outros, e entretidos individualmente com as coisas que inventámos, custa-nos, com toda a razão, a compreender muitos factos vindos das arábias, realidades que ferem gravemente a dignidade da pessoa humana e os valores democráticos. Do mundo árabe, a partir dos líderes, num misto de estratégia ou também por verdade cultural, onde para despertar o valor do grupo bastará dizer uma palavra, custará a entender (em termos sociológicos) o nosso sentido de superioridade civilizacional hoje baseada na tecnologia e economia, o individualismo alienante do sentido de comunidade-cultura, a nossa liberdade (também de expressão) sem fronteiras, o cartoon que fazemos com os valores sagrados, e a própria solidão a que deixamos os nossos idosos (facto que nunca acontece no oriente). Como é claro, a nosso ver, nada justifica as embaixadas incendiadas, a manifestação pública enfurecida, o diabolizar das nações ocidentais, o queimar das bandeiras, já mesmo as vítimas deste facto. Como é certo, também, no ver de um islâmico razoável e de bom senso, o coração ficaria ferido com este brincar, satirizar e inflamar do sagrado, a que estamos habituados a chamar de “liberdade de expressão”. Que sentiríamos, por exemplo, se pegassem nos limites de uma instituição – todas os têm, e não há nenhuma civilização perfeita - ou na honrosa bandeira e com ela se fizesse o cartoon, a crítica mais baixa e depreciativa deste mundo… Que sentir? No nosso entender ocidental para isso existem os tribunais para julgar, e eles, de facto, mais coisa menos coisa, estão cheios de “liberdades” de expressão... Agora, no entender corporativo árabe, ainda que com todos os contextos e textos, quando a coisa salta para o colectivo, tudo avança, mesmo sem pensar… Talvez, no ocidente deveríamos ter percebido isto mesmo, este diferencial cultural: aquilo que para nós é brincar individualmente, para outros é coisa séria e sempre comunitária; e no que toca ao sagrado então tudo se multiplica indefinidamente, gerando reacção corporativa. 3. Neste caso, como atitude cultural, o mundo islâmico gravemente meteu água. E o facto de estarem muito pouco preocupados com isso, no consciente colectivo do povo árabe, é facto de que estamos diante do incontrolável. A comunidade islâmica é um mundo de visões do Islão, onde das visões saudáveis às moderadas é inexistente uma voz serena de conjunto. Este facto é muito preocupante. O mundo islâmico, e talvez esse seja o seu segredo no avançar pelo (indiferente e distraído nestas questões) ocidente, sabe e vai-se adaptando no silêncio de todos os dias…mas depois, no que toca ao essencial (Maomé) o espírito de existência e unidade salta acima do razoável. Nesta situação, também, a liberdade de expressão terá posto a “gota de água”. Hoje é um facto que, das fronteiras abertas, em França, por exemplo, o Islão é a segunda grande comunidade cultural e religiosa. Ou então, vamos à nossa memória e entendamos que os atentados de Londres foram realizados por jovens ingleses com ideias de fanatismo islâmico... Se quisermos mesmo ser críticos de nós próprios, então sejamos: neste caso concreto perdemos a “liberdade” porque a crítica e sátira terá sido desmedida, generalizadora, não responsável com o paradigma cultural de que fala. Sendo certo que a saudabilidade do cartoon é colocar a sua dose de pimenta…o certo é que a “expressão” terá de ter as suas fronteiras de sensibilidade para ser mesmo “livre”. Para nós, cartoonistas da nossa própria vida porque já aprendemos a lidar com os nossos próprios erros e estamos habituados com maturidade aos “nãos” de cada dia, temos de aprender mais a lidar com a diferença. Mas a diferença no que ela terá de saudável; já é absolutamente incompreensível a declaração fanática de Omar Bakri (aos microfones da BBC nestes dias): “No Islão, Deus diz, e o seu mensageiro Maomé diz, que quem quer que insulte o profeta deve ser punido e executado”. Preocupante e gravíssimo demais é, ainda, o silêncio, pois nenhuma voz oficial islâmica veio corrigir. Esta relativa indiferença (de todos os dias) dos líderes islâmicos de bom senso é muito grave. 4. Talvez a única via possível, e mesmo depois de apelos à serenidade da parte de alguns líderes, seja mesmo a unidade de voz do Islão equilibrado. Mas o que é este Islão de bom senso e qual a sua força efectiva diante das multidões? Sabemos?... Ou teremos iniciado neste caso ícone a era de poder árabe em que qualquer palavra ou imagem de consideração justamente menos positiva sobre excessos islâmicos serão gota de água para a rebelião anti-ocidente? De fora ninguém consegue obrigar ou impor, nem mesmo as comunidades islâmicas que estão espalhadas pelo mundo gozando o bem-estar ocidental (mas por vezes observadas de traidoras pelos seus…). O segredo, talvez, terá de passar por uma nova consciência de maturidades e equilíbrios na Liga Árabe (com a ajuda da ONU). Haja esperança com realismo!...

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