domingo, 29 de outubro de 2017

Bento Domingues — Descongelar, protestar, agir


1. Espero que as últimas notícias de Fátima não sejam a viagem a Roma do bispo António Marto para agradecer a visita do Papa Francisco e a celebração da chegada ao Santuário de uma relíquia de João Paulo II. É de supor que lhe tenha agradecido, sobretudo, as admiráveis homilias feitas na Cova da Iria e tenha apresentado as medidas que o Santuário tomou, se é que existem, para fazer desses textos instrumentos da evangelização de Fátima. Para quando o abandono de invocações e orações muito pouco cristãs?
A doutrina católica não se pode guardar sem a purificar. Tudo o que é verdadeiramente cristão cresce, progride, tende continuamente para a plenitude, como Bergoglio acaba de lembrar, a propósito do XXV aniversário do Catecismo da Igreja Católica. A Tradição é uma fonte de vitalidade quando não é confundida com as tradições da preguiça, do “sempre assim foi”.
Como diz o Papa, só uma visão parcial pode conceber o “depósito da fé” como algo estático. A Palavra de Deus não pode ser conservada em naftalina, como se fosse uma velha manta que é preciso proteger das traças. É uma realidade dinâmica que progride e cresce. Tende para a perfeição. Ao sublinhar que “se fortalece com o decorrer dos anos, cresce com o andar dos tempos, desenvolve-se através das idades”, Francisco entra pelas arrojadas expressões de São Vicente de Lérins (séc. V) [1].
Em conversa com os jesuítas colombianos, o Papa argentino, foi ainda mais incisivo: não se pode continuar a ser formado como eu fui, numa filosofia escolástica decadente, bastante ridícula e que, depois, se traduzia numa pastoral dominada pela casuística.
A seguir, aproveitou uma pergunta desse diálogo para enfrentar os adversários que o caluniam e destacar o que, a seu ver, «deve ser dito por justiça e também por caridade. De facto, ouço muitos comentários – respeitáveis, porque de filhos de Deus, mas errados – sobre a Exortação apostólica pós-sinodal. Para compreender a Amoris laetitia é preciso lê-la do começo até ao fim (…). Alguns afirmam que a Amoris laetitia não tem uma moral católica ou, pelo menos, uma moral segura. Sobre isto gostaria de reafirmar, com clareza, que a moral da Amoris laetitia é tomista, do grande Tomás. Podeis falar sobre isto com um grande teólogo, entre os melhores e mais maduros de hoje, o cardeal Schönborn. Desejo dizer isto para que ajudeis quantos crêem que a moral é mera casuística. Ajudai-os a darem-se conta de que o grande Tomás possui uma riqueza imensa, capaz de nos inspirar ainda hoje» [2].
O acolhimento das relíquias de João Paulo II, em Fátima – todos os santuários estão carregados de relíquias –, não pode fazer esquecer um fenómeno muito curioso. Jesus de Nazaré não nos deixou nenhum resto do seu corpo nem da sua veste. As únicas relíquias de Jesus Cristo são as comunidades cristãs de hoje, em comunhão com as do passado. Frei Francolino Gonçalves, que viveu na Escola Bíblica de Jerusalém mais de 40 anos, como investigador e professor, indignava-se ao ver tantos grupos católicos, acompanhados de padres e bispos, a olhar para um túmulo vazio, esquecidos de visitar as comunidades cristãs da chamada Terra Santa. Procuram relíquias que não existem e ignoram as comunidades do Ressuscitado!

2. Nos dias 20-21, deste mês, realizou-se, na Universidade Fernando Pessoa, o Congresso (Re)Visões de Fátima. Como não pude estar em tudo, é impossível assinalar o alcance de todos os seus contributos no âmbito das ciências humanas, da teologia e da filosofia. A publicação das Actas marcará a novidade e a importância dessa multifacetada investigação fora do âmbito confessional.
Nos dias 21 e 22, participei no Encontro de formação do persistente Movimento «Fraternitas», uma associação privada de fiéis, constituída por Padres dispensados do exercício do ministério, casados ou não, e as suas esposas ou viúvas. Tem estatutos aprovados pela Conferência Episcopal Portuguesa. Goza de personalidade jurídica sem fins lucrativos.
Dito assim, continuamos na ignorância da significação da história da opção pelo casamento de muitos padres e dos seus heróicos esforços para continuarem membros activos, nas paróquias e nas dioceses, a partir da sua competência profissional e preparação pastoral. As resistências que encontraram e encontram em Portugal, e noutros países, fizeram de uma nova oportunidade evangelizadora, na linha do Vaticano II, uma perda irreparável [3].
O tema do Encontro de formação deste Outubro, realizado no Seminário Redentorista de V.N. de Gaia, vinha com este título: A “Igreja do Papa Francisco”- andamento, linhas, armadilhas…
Deixo aqui uma passagem do texto discutido por todos:
(…) Em contraste com o caloroso acolhimento que este Papa está a ter entre aqueles que se afastaram da Igreja ou de quem a Igreja se afastou, os participantes no encontro concluíram que, entre nós, está a verificar-se uma resistência passiva contra as suas orientações doutrinárias e pastorais. Mesmo que não se trate de resistência, é preocupante verificar como os documentos do Papa caem rapidamente no esquecimento ou não têm a repercussão que se esperaria. Por exemplo, a maioria das publicações da Igreja está a dar um lugar quase irrelevante às luminosas catequeses papais contidas nas suas múltiplas intervenções e nas homilias proferidas em Santa Marta.
Frente a movimentos organizados de resistência aos documentos programáticos do Papa, torna-se preocupante verificar que os órgãos hierárquicos da Igreja, designadamente a Conferência Episcopal, não tomem uma posição pública de defesa clara das orientações pastorais por ele protagonizadas. Numa altura em que se avolumam ataques tão ruidosos ao nosso Papa, este silêncio torna-se inaceitável, pois está a lançar uma grande perplexidade entre muitos sectores do Povo de Deus, que esperavam, dos seus pastores, sinais mais insofismáveis de comunhão com o Papa.

3. Por causa dessa resistência passiva, pouco se ligou à Carta Encíclica Laudato Si (2015) que podia ter sido um instrumento de mobilização dos católicos para cuidarem, nos seus locais de habitação e trabalho, de um bem que é de todos. Falamos de direitos, mas esquecemos os deveres [4] de cada pessoa, entregando tudo à responsabilidade do Estado.
Voltaremos a este tema.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Cf L’Osser. Romano, 19.10.2017, pp.11-12
[2] Ib., p. 12
[3] Cf. para a história, Alípio Martins Afonso, Cónego Filipe de Figueiredo, Homenagem vivencial da Fraternitas Movimento, Águeda, 2010; espiral boletim da Fraternitas Movimento.
[4] Declaração Universal dos Deveres Humanos, Proposta do InterAction Council, 1. Setembro. 1997. Edição Pro Dignitate, Fundação de Direitos Humanos.

sábado, 28 de outubro de 2017

Dia Mundial da Terceira Idade



Celebra-se hoje, 28 de outubro, o Dia Mundial da Terceira Idade, razão mais do que suficiente para assinalar o facto, ou não pertencesse eu a essa faixa etária. E se porventura já ultrapassei esse estádio da vida, nem por isso deixo de ficar tranquilo, porque certamente já alguém admitiu a hipótese de regulamentar o Dia Mundial da Quarta Idade.
Não sou dos que desdenham destas comemorações porque, no fundo, o que se pretende com elas é chamar a atenção para a realidade da vida concreta dessas pessoas, carentes de mais cuidados e atenções, a diversos níveis, nomeadamente, económicos, sociais, familiares, culturais e de saúde. 
Não sendo o meu caso, que tenho a Lita, minha mulher, há mais de 50 anos, filhos e netos que nos acarinham, a verdade é que há muitos idosos que vivem sós, esquecidos, menosprezados e até abandonados. 
Permitam-me que sublinhe a importância dos menos jovens na sociedade atual, fundamentais na transmissão de saberes, de valores e tradições, contribuindo ainda para a estabilidade familiar, sobretudo pelo exemplo, pela palavra oportuna, pelo conselho carregado de experiência vivida e pelo estímulo de emoções congregadoras. 
Não gostaria de saber que há idosos maltratados, humilhados e atirados para um canto como coisa inútil. Mas fico feliz quando sei que há idosos ocupados a ensinar artes e ofícios, a relatar histórias das suas vidas, a transmitir conhecimentos caídos em desuso, a partilhar sonhos concretizados e a indicar caminhos do bem, do belo e do bom, vivenciados durante décadas. 
Um futuro à medida das necessidades e sonhos das gentes da minha geração.

Fernando Martins

Mudança da hora


Logo mais, domingo, 29 de outubro, às 2 horas, atrase o relógio 60 minutos. Quando isso acontecer, ficamos na uma hora. É fácil e até temos sorte porque podemos dormir mais uma horita. Depois, tudo continua a rolar, normalmente. O nosso corpo e a nossa mente acabam por se adaptar. E a vida prossegue como dantes.

Paulo Costa na hora de deixar a política partidária

Paulo Costa

Ao cessar funções na Câmara Municipal de Ílhavo, como vereador, Paulo Costa teve a gentileza de me enviar um texto de despedida e de agradecimento. «Após 16 anos de intensa actividade, que me envolveram de uma forma total e me realizaram completamente, entendi que, apesar de gostar imenso daquilo que faço, chegou a hora de fazer outras coisas fora da Câmara e fora da política partidária», disse. 
Paulo Costa, que sempre me honrou com a sua amizade, foi, realmente, um vereador com uma capacidade muito grande para dialogar com toda a gente, independentemente da cor partidária dos seus interlocutores, o que diz muito do seu caráter e do seu modo, franco e aberto, de participar na política e na vida, sem sectarismos nem complexos. 
As suas palavras de agradecimento, ao fim de 16 anos de entrega total à comunidade, como vereador, vão, obviamente, para todos os que com ele privaram, mas não deixa de reconhecer que viveu, na autarquia ilhavense, «momentos verdadeiramente memoráveis» que o «ajudaram a crescer e a amadurecer como político, como profissional, mas acima de tudo como homem». E acrescenta: «O que sou hoje, devo-o aos bons momentos, assim como aos menos bons, mas sobretudo às pessoas com quem tive o privilégio e a felicidade de conviver». 
Gosto, francamente, de políticos que não se deixam levar pela «vã glória de mandar», tendo a coragem de procurar outras vias de enriquecimento pessoal e de serviço à comunidade, na certeza de que a vida nos oferece outros horizontes de empenhamento social e profissional, tão válidos e importantes como os do mundo da política partidária.
Um abraço amigo para o Paulo Costa, com votos das maiores venturas.

Fernando Martins

Os blogues continuam

Lita e Fernando em passeio 
Os blogues, que hoje são aos milhões pelo mundo, nasceram há poucos anos. Em Portugal entraram em 2003 e logo foram adotados e seguidos também por milhões de portugueses. O meu Pela Positiva nasceu em Dezembro de 2004. Como é sabido, eles conseguem ser, nos tempos que correm, um grande desafio à nossa forma de comunicar, distinguindo-se alguns por terem mais influência que outros meios de comunicação social. 
Eu sei que o Facebook lidera presentemente a forma de comunicar de milhões e milhões de pessoas de todo o mundo, com desabafos, trocas de informações e desinformações, partilha de saberes e sabores, fotografias, comentários, vídeos e artes, mas também com provocações e aplausos. Tem como inconvenientes, na minha ótica, a certeza de que o imediato se esquece minutos ou dias depois.
Os blogues, naturalmente atualizados com mais cuidado, permanecem no tempo. Por experiência própria, posso testemunhar que frequentemente recebo comentários e pedidos de informações sobre textos que publiquei nos meus blogues. Por isso, a minha opção ainda vai para a blogosfera, onde diariamente me dou ao cuidado de marcar presença no ciberespaço.
Permitam-me que dirija uma palavra de gratidão a todos os meus leitores e amigos.

Fernando Martins

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Georgino Rocha: Onde está o padre, meu irmão?


Esta pergunta é pertinente para todos, sobretudo para os cristãos. Sempre, especialmente nos períodos em que a realidade do clero se mostra em mudança tão acentuada. Sempre, mas mais ainda quando os sinais de alarme disparam um pouco por todo o lado.

O padre, pessoa com um perfil tão identificado na Igreja e na sociedade, vive em si as alegrias e as perplexidades da mudança de época que caracteriza a nossa civilização. Alegrias, resultantes dos novos contornos da missão pastoral na Igreja centrada em Jesus Cristo, o amigo dos pobres e dos silenciados, a quem é preciso restituir a voz da dignidade. Alegrias, polarizadas na comunhão dos padres no único presbitério da Igreja diocesana presidida pelo Bispo local e no seio das comunidades e movimentos que a configuram. Alegrias, vividas ao ritmo dos passos de humanização que se vão registando sempre que a relação solidária prevalece sobre o casulo do egoísmo.

A pergunta inicial tem sabor bíblico e surge no contexto em que o ciúme prevalece sobre o respeito pela diferença do outro, o convite do passeio é trespassado pelo desejo de desforra, o campo tem as cores do sangue derramado pelo crime praticado e clama por justiça. A referência que passa em “pano de fundo” é o episódio de Caim e Abel, episódio que vem a repetir-se em muitos outros passos da nossa história comum. Mais do que saber onde está, o autor narra traços de como está. E assim ilustra bem a situação do outro, meu irmão.

O programa diocesano de pastoral pretende alcançar esta objectivo. Sucedem-se iniciativas. Congregam-se pessoas. Apontam-se situações. Esboçam-se estados de ânimo. Tudo a querer convergir em conhecer melhor a realidade que se nos depara e na qual se encontra a voz do Espírito em gemidos inenarráveis. Sintonizar com esta voz e criar condições para que se liberte e diga o que tem para dizer à nossa Igreja, como outrora às comunidades da Ásia Menor, é serviço pastoral de relevo humanizante que evangeliza.

O padre, meu irmão, está envolvido neste dinamismo absorvente. O zelo de pastor solícito leva-o a reprogramar continuamente a sua agenda, a reexaminar a gestão do seu tempo, a reequacionar a escala de prioridades, a dialogar com colegas e leigos, a abrir-se à corresponsabilidade, a repartir tarefas que em si se foram concentrando, a cuidar das emoções e afectos, do mundo interior e espiritual, a confiar mais visivelmente no Espírito Santo que mantém aberto o tesouro dos seus dons para quem os queira receber e valorizar.

O padre, meu irmão, está sujeito às contingências de todos os seres humanos: surpresas de cada dia, energias a gastarem-se, idade a pesar progressivamente, cansaço a espreitar uma “entradinha” e a querer abrir a porta a outras situações preocupantes, recurso ao silêncio solitário e mais expedientes, assaltos de angústia depressiva. A revista “Família Cristã” vem dedicando a sua atenção a estes estados evolutivos em ordem a fazer atempadamente a indispensável prevenção e recuperação.

A saúde do padre não é apenas um bem pessoal. Como homem da comunidade, diz respeito também aos cristãos, paroquianos ou não. A gratificação como reconhecimento da doação feita pela felicidade dos outros constitui um suporte emocional de qualidade. A companhia, quando desejada, reconforta e estimula à superação. A relação de ajuda espiritual é sempre um arrimo de valor incalculável. A preocupação dos cristãos, sempre necessária, mostra a qualidade da fé no vínculo que os une e a firmeza da esperança que os irmana. Sempre, mas ainda mais nas épocas de encruzilhada pastoral em que que se misturam, frequentemente, critérios de sabor contrastante, e muitos fiéis cristãos afirmam a sua determinação subjectiva que pretendem fazer prevalecer na comunidade cristã. E o ricochete vai para o padre, o irmão mais próximo e rosto da instituição eclesial.

O magistério do Papa Francisco tem sido luminoso, a este propósito, e rasga horizontes de sã inquietude evangélica. Abre caminhos que, em sintonia com os nossos Bispos, somos convidados e percorrer. Aproveitemos a oportunidade aberta pelo programa pastoral 2017/2018.

Georgino Rocha

Miguel Torga - PORTUGAL

Portugal
Consultório em Arganil

Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.

Miguel Torga, in 'Diário X' 

Anselmo Borges - Onde estarei, quando deixar de existir?

Anselmo Borges


1 A pergunta do título é feita, textualmente, por Ivan Ilitch, nas vésperas de morrer. Uma pergunta de abismo e de calafrio, que abala até à raiz do ser, terrível e lancinante.
Há muitos anos, tinha lido A Morte de Ivan Ilitch, uma das obras-primas de Tolstoi, pequena em volume, mas imensa em humanidade: vai até aos abismos da nossa condição. Recentemente, o livrinho vinha acoplado, gratuitamente, a uma revista. E reli. E lá está a pergunta, que retomo, para algumas reflexões, em vésperas do Dia de Todos os Santos e do Dia dos Finados (1 e 2 de Novembro), os dias em que as nossas sociedades, que fizeram da morte tabu - disso não se fala - permitem alguma abertura à pergunta que está na raiz de todas as perguntas: onde é que eu estarei, quando já cá não estiver?
Ivan Ilitch, o conselheiro do Supremo Tribunal, sabia que ia morrer e estava apavorado, desesperado. "No fundo da sua alma, estava bem certo de que ia morrer mas não só era incapaz de se afazer a essa ideia, não a compreendia sequer, era incapaz de a compreender." Ele também tinha estudado lógica e lá estava um exemplo de silogismo: todos os homens são mortais, Caio é homem, logo Caio é mortal. Isso era evidente. Mas Caio era um homem em geral e, claro, tinha de morrer, era natural que morresse. Ivan Ilitch, porém, não era Caio, era ele mesmo, único, irrepetível. E estava perante o abismo sem fundo do incompreensível. Como compreender que morresse? Era simplesmente horrível, apavorante, paralisante, incompreensível. Impossível. Tentava, pois, escorraçar aquela ideia, "como coisa falsa, anormal, doentia, tentando substituí-la por outras ideias, normais e sãs". E, contudo, era assim mesmo: ia morrer. Essa realidade bruta erguia-se, impenetrável e certa, diante dele.
Ivan Ilitch tinha um tormento maior, que consistia na mentira, admitida por todos: afinal, ele apenas estava doente e não era um moribundo. Mas ele sabia bem que o esperavam sofrimentos terríveis e a morte. Essa mentira atormentava-o e sofria por não quererem admitir a realidade bruta, tendo ele próprio de participar naquela intrujice. "A mentira que cometiam para com ele nas vésperas da sua morte, essa mentira que rebaixava o acto formidável e solene da sua morte até ao nível das suas visitas, dos seus jantares, era atrozmente penosa a Ivan Ilitch. E, coisa estranha! Esteve muitas vezes quase a gritar-lhes, quando eles exibiam à volta deles as suas histórias da carochinha: "Basta de mentiras! Bem sabeis e eu bem sei que vou morrer! Acabem ao menos com essas mentiras!" Mas nunca teve coragem de agir assim. O acto atroz da sua agonia era rebaixado pelos que o rodeavam, bem o via, ao nível de um simples dissabor." Aliás, outros pensamentos ocupavam agora alguns colegas: o aborrecimento de terem de ir ao funeral, mas, com a morte dele, também poderia estar mais próxima a sua promoção e a dos amigos, tinham sobretudo um sentimento de alegria: era ele que estava a morrer e não eles. Ivan Ilitch, esse, gemia de angústia, porque os dias e sobretudo as noites eram intermináveis: "Se isto pudesse acabar mais depressa. Mais depressa? O quê? A morte, as trevas!... Não, não! Tudo é melhor do que a morte!" E chorava e gritava por causa da sua situação, "pela horrível solidão, pela crueldade dos homens, pela crueldade de Deus, que o tinha abandonado".

2 Philippe Ariès chamou a atenção para o facto de esta obra de Tolstoi ser dos primeiros avisos de que estava a caminho a "mentira" sobre o morrer e a morte. Na atitude tradicional, a morte era natural e quase familiar, mas, entretanto, ela tornou-se tabu, o último tabu. Não é de bom tom referir-se-lhe. Disso pura e simplesmente não se fala. O próprio luto é ocultado.
O que se passou? Evidentemente, a "morte" de Deus e a desafeição pela religião deixaram as pessoas no desamparo. Vive-se numa sociedade da produção e do consumo, do êxito, do hedonismo, uma sociedade tecnocrática, poderosíssima nos meios mas paupérrima nas finalidades humanas, posta em causa precisamente pela morte. A morte não deixou, portanto, de ser problema; pelo contrário, de tal modo é problema, o único problema para o qual este tipo de sociedade não tem solução, que a única solução é ignorá-la, como se não existisse. Vive-se então na banalidade rasante, na superfície de uma existência agitada e fragmentada, na vertigem do tsunami (des)informativo e na busca do êxito a qualquer preço e no espectáculo indecoroso de um poder interesseiro, sem atenção ao essencial e decisivo, ignorando os outros, numa solidão atroz.
Não sou de modo nenhum partidário do pensamento mórbido sobre a morte, que foi muitas vezes utilizada, também pela Igreja, para dominar e tolher a vida. Mas estou convicto de que, sem o pensamento são da morte, se perde o essencial. Porque é ele que obriga a distinguir, como sublinhou M. Heidegger, entre a existência autêntica e a existência inautêntica, entre o justo e o injusto, entre o que verdadeiramente vale e o que realmente não vale, e a abater tanta vaidade ridícula e a pouca-vergonha. Esse pensamento não envenena a vida, pelo contrário, leva a viver digna e intensamente cada momento e a abrir-se aos outros. Já perto da morte, o filósofo H. Marcuse voltou-se para o amigo, também filósofo, J. Habermas: "Sabes, Jürgen? Agora sei onde se baseiam os nossos sentimentos morais: na compaixão."
A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos estando mortos. Com a morte, acaba tudo? É tão próprio do ser humano saber da sua morte como esperar para lá dela. Para a eternidade vamos: a eternidade do nada ou a eternidade da vida plena em Deus. É razoável esperar e confiar em Deus, e a razão está em que, no próprio acto de confiar, se mostra a razoabilidade desse acto, porque então, contra o absurdo, o mundo e a existência encontram sentido, sentido último, a salvação.

Anselmo Borges no DN

Georgino Rocha — AMAR: Critério único da vida



Jesus manifesta uma paz de espírito admirável, transmite uma liberdade interior brilhante, reage serenamente à provocação dos fariseus em busca de uma prova acusatória. O episódio narrado por Mateus ocorre nas imediações do Templo. A provocação surge na forma de pergunta sobre o maior mandamento. Pergunta fundamental não apenas para os Judeus, mas para nós, os seres humanos, chamados a realizar a nossa vocação ao amor. Mt 22, 34-40.

O amor é a energia vital que nos humaniza e enobrece, tem a sua fonte em Deus e manifesta-se em opções e critérios, atitudes e gestos concretos. É dinamismo de relação que revigora o laço solidário que nos une e recheia a consideração que nos dispensamos. É alimento de esperança no futuro e força de envolvimento no presente. Sem ele, a pessoa enclausura-se no egoísmo e a sociedade empobrece no tecido por onde flui a seiva do desenvolvimento integral. Sem ele, o coração faz-se insensível e a vontade indiferente, a inteligência rígida e o desejo fantasioso, as leis espartilhos e os mandamentos imposições insuportáveis. A vida entrincheira-se no reduto autorreferencial e perde horizontes de sentido, cultivando apenas o jardim da zona de conforto individualista.

Os fariseus dirigem-se a Jesus e querem saber qual é o maior mandamento, pois tinham 248 preceitos e 365 proibições, ou seja 613, tal era o seu empenho em prever todas eventualidades na vida e assim cumprir a vontade divina. Preocupação legítima para um regime de religião controlada, de sistema vigiado, de segregação de “puros e impuros”. Mateus, porém, adverte que a pergunta entranhava certa malícia, pois era para apanhar Jesus em algo acusatório. A resposta surge diáfana e serena como se nada de especial estivesse a acontecer: Amar a Deus e ao próximo como a ti mesmo. E para não haver dúvidas, acrescenta: Nestes dois mandamentos se encerra a Lei inteira e os profetas, ou seja toda a revelação conhecida da vontade de Deus. Resposta sublime. Deixa desarmados os inquisidores. Terão ficado satisfeitos ou amargurados, esclarecidos ou intrigados? Tudo é possível. Mas não desarmam e as próximas cenas apontam para a retaliação, a prisão e a condenação.

Jesus põe a claro que há um só amor que se manifesta em intensidades diferentes. Concretamente, a resposta indica três: Amar a Deus com doação total, pois Ele toma a iniciativa de vir ao nosso encontro, amar os outros sem reservas, tendo como referência o bem que cada um deseja para si. Ou dito de outro modo: Aprecia o teu bem com o critério de Deus, respeita e solidariza-te com o próximo com a medida que usas para ti mesmo, reconhece que o amor te faz entrar e viver no circuito de amor próprio de Deus, comunhão das três pessoas divinas.

O amor abre-nos a Deus de quem procedemos e com quem nos relaciona, faz-nos ver os outros humanos como irmãos empenhados no mesmo bem, e impele-nos a apreciar as criaturas e a criação, o ambiente e a natureza como herança a valorizar e a transmitir às próximas gerações. Por isso, o amor abrange a pessoa toda e deve ser cuidadosamente apreciado como valor maior e educado como dimensão superior da nossa comum humanidade. Outras dimensões que certa imprensa “cor-de-rosa” difunde e de que se alimenta serão sempre pirilampos de luz intermitente a brilhar na noite escura do gosto instantâneo, do prazer descartável, do biblô de satisfação imediata.

O amor de Deus é derramado em nossos corações e quer irrigar as veias da humanidade e fazer surgir a correspondente civilização, espelho da nossa dignidade. A construção do sociedade passa por aqui. Só o amor edifica, garante São Paulo ( 1Co 13, 4-7) . Escala de valores, opções de vida, critérios de acção, atitudes, sentimentos e palavras hão-de ser reflexo acessível nos ambientes da família e da convivência social, do lazer e da profissão. Hão-de ser veiculados pela educação e pela comunicação, pela relação de proximidade benevolente e pela atenção solícita a tudo o que diz respeito ao que acontece a todos, sobretudo aos mais pobres, como recomenda o livro do Êxodo na 1ª leitura deste domingo.

Inicia-se, hoje, a semana dedicada à educação cristã. Os nossos Bispos enviam-nos uma mensagem com o título expressivo: «A Alegria do Encontro com Jesus Cristo». É dela que retiramos alguns parágrafos que nos fazem sentir o realismo do amor, sentido único da vida.

A alegria do encontro é, antes de mais, a alegria de nos sentirmos amados, de modo pleno e incondicional. Mesmo no pecado? Então ainda mais!... já que a carência é maior... É também a alegria pelo “novo horizonte” e o “rumo novo” que esse amor dá à nossa vida… É, enfim, a alegria de vermos a nossa vida a prolongar-se nas vidas daqueles a quem a damos: os pais nas dos filhos; os catequistas nas dos catequizandos; os professores nas dos alunos; todo o educador nas dos educandos (cf. CEP “Catequese: A alegria do encontro com Jesus Cristo”, IV). Uma alegria que cresce, quando também eles se dão – a partir do encontro com Cristo, mediado por cada um de nós, que então pode, por isso, dizer: É Cristo que vive em mim (Gl 2, 20)… Acolhamos, por tudo isso, o convite do Papa Francisco a “todo o cristão, em qualquer lugar que se encontre, a renovar (…) o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de o procurar no dia-a-dia sem cessar” (A Alegria do Evangelho, n. 3).

Georgino Rocha

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Agostinho da Silva sobre os políticos



«Nenhum político deve esperar que lhe agradeçam ou sequer lhe reconheçam o que faz; no fim de contas era ele quem devia agradecer pela ocasião que lhe ofereceram os outros homens de pôr em jogo as suas qualidades e de eliminar, se puder, os seus defeitos.»

Agostinho da Silva

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Tempo de Outono — Árvores depenadas



Anda não chegou o frio outonal? Não. Mas os seus sinais já estão à vista. À vista nas roupas que usamos à medida do tempo que faz. As árvores e arbustos começam a ficar nus, depenados, como que a anunciar que vão hibernar. Daqui a uns tempos, já a vida vegetal estará em sono profundo. Mas nós, enfrentando o frio corajosamente, continuaremos por cá a pôr a conversa em dia, nem que seja ao calor da fogueira. Bom outono para todos.

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Animais das nossas vidas

O Toti e a Tita foram animais das nossas vidas. Aqui estão no relvado com a Lita. Descontraídos e excelentes companheiros, cada um com o seu...

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