Crónica de Anselmo Borges
Como estudante de Teologia, J. Ratzinger destacou-se entre todos e viveu esses anos mergulhado na grande ebulição teológica que se seguiu à Guerra, preparando um novo futuro para a Igreja. A orientação era o diálogo entre a fé e a razão, a racionalidade e a beleza, o diálogo ecuménico, a “Nova Teologia” ..., seguindo a verdade, porque “a renúncia à verdade não resolve nada, pelo contrário, leva à ditadura do arbitrário”.
Foi ordenado padre com o irmão no dia 29 de Junho de 1951. Tornou-se capelão, ouvindo confissões aos Sábados durante 4 horas e aos Domingos celebrando duas Missas e duas ou três pregações. Doutorou-se em Julho de 1953 com uma dissertação sobre “Povo e Casa de Deus na doutrina de Agostinho sobre a Igreja”. Ficou uma palavra marcante de Santo Agostinho, ao definir a Igreja como “Povo de Deus espalhado pela Terra”.
Para poder realizar o seu sonho de fazer carreira como Professor de Teologia, preparou uma tese de habilitação (Habilitationsschrift) sobre a revelação: Offenbarung und Heilsgeschichte nach der Lehre des heiligen Bonaventura (Revelação e história da salvação segundo a doutrina de São Boaventura). Os dois exemplares exigidos foram entregues na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Munique no Outono de 1955. Aí, começou um drama de abismo. Michael Schmaus comunicou de modo seco, “sem qualquer emoção”, que tinha de rejeitar a tese. Foi tal o choque que da noite para o dia o cabelo de Ratzinger ficou grisalho. Teria de deixar a Universidade e, pensando sobretudo nos pais, “seria uma catástrofe, se tivesse de deixá-los na valeta”. Razões para a rejeição, por parte de Schmaus e outros professores: Ratzinger sabe “ligar fórmulas floridas, mas onde está o cerne da questão?”, “evita definições precisas”, é “demasiado emocional”; mais: foi considerado “quase perigoso”, “um modernista”, “progressista”, acabando numa “compreensão subjectivista da revelação”...
No meio da tempestade, o seu orientador de tese, Gottlieb Söhngen, conseguiu que o trabalho não fosse rejeitado, mas devolvido para melhoria. “Joseph, que quer Schmaus?”, brincam os colegas, gozando. Resposta: “Ser importante.” Naquelas semanas dramáticas, não se zangou com Deus, mas “pediu-lhe suplicantemente auxílio”. E pôs-se ao trabalho, passando a tese de 700 para 180 páginas. No dia 21 de Fevereiro de 1957, depois do debate no Grande Auditório da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, ouviu a palavra salvadora: “Aprovado”. O que é facto é que tanto a sua dissertação de doutoramento sobre a Igreja “Povo de Deus” como a tese de habilitação sobre a revelação encontrarão forte eco nos documentos do Concílio Vaticano II. Entretanto, “era muito estimado entre os estudantes, como uma ‘voz da linha da frente’, pois o que fazia era quase uma revelação."
O Papa João XXIII foi eleito no ano seguinte, 28 de Outubro de 1958, e, em Janeiro de 1959, teve a ideia de convocar um Concílio ecuménico, dando cumprimento a uma necessidade que já vinha do tempo de Pio XII. Desta vez, não era para condenar heresias, “não se tratava de resolver nenhum problema determinado”, mas do todo. “O cristianismo, que tinha construído e formado o mundo ocidental, parecia perder cada vez mais a sua força formativa, parecia cansado”, sublinhou Ratzinger. Ele tinha, portanto, de “erguer-se no Hoje, outra vez, para poder tornar-se de novo formativo para o Amanhã”. Ratzinger ousa olhar para o futuro e torna-se, em pouco tempo “um autêntico fã” de João XXIII: “ele fascinou-me desde o início, também por causa do seu modo não convencional, por ser tão directo, tão simples, tão humano”.
Entretanto vai-se procedendo à formação das Comissões preparatórias do Concílio. O cardeal J. Frings, de Colónia, era membro da Comissão Central. Ora, pasme-se, ele que se tinha comprometido com um discurso em Génova, foi ter com Ratzinger, já Professor da Universidade de Bona: “Senhor Professor, pode prepará-lo?” O discurso foi feito e publicado e, numa audiência, diz João XXIII a Frings, abraçando-o: “Eminência, tenho que agradecer-lhe. Li esta noite o seu discurso. Que feliz coincidência do pensamento! Disse tudo o que eu penso e queria dizer, mas que eu não saberia dizer.” Frings: “Santo Padre, não fui eu que o fiz, mas um jovem Professor.” João XXIII: “A minha última encíclica também não fui eu que a escrevi, mas um perito.” O biógrafo, Peter Seewald, confronta então o discurso de abertura do Concílio, a 11 de Outubro de 1962, de João XXIII, e o discurso de Frings, isto é, de Ratzinger, para mostrar as coincidências.
No seu texto, Ratzinger apresenta as exigências do Concílio face às mudanças sociais do mundo, que vê marcado por três grandes movimentos: a globalização, a tecnicização e a crença na ciência. Uma das causas principais do ateísmo moderno está na “autodivinização da humanidade”. Mas a ciência não pode dar resposta à “necessidade da luta ética”, pois não toma a sério o homem enquanto ser moral, com liberdade e consciência. Missão do Concílio tem, portanto, que ser, em diálogo com a modernidade, formular a fé cristã como uma alternativa autêntica, vivível e digna de ser vivida. A Igreja como Povo de povos tem que ter em conta a pluralidade de formas da vida humana. Num
mundo global, o catolicismo tem de ser verdadeiramente católico, plural, concretamente a liturgia “tem que ser tanto um espelho da unidade da Igreja como uma expressão adaptada das particularidades dos respectivos povos.”
(Continua)
Anselmo Borges no DN