Poços de rega
faziam parte das nossas paisagens
Passei há dias pela Casa Gafanhoa a convite da direção para apreciar mais um motivo de interesse — um poço de rega — que merece ser apresentado a quem nos visita, com o intuito de não deixar cair no limbo do esquecimento uma excelente forma de regar os campos cultivados de solo arenoso, muito permeável à água da chuva ou de outra natureza. Imagino, por isso, os sacrifícios por que terão passado
os nossos ancestrais para evitar que determinadas culturas não morressem de sede, sendo certo que alguns cereais, por natureza, não necessitassem tanto de rega, nomeadamente, o centeio, a cevada, a aveia e o trigo.
O poço ali está nas traseiras da Casa Gafanhoa com engenho que inclui os alcatruzes, de furo na base, para o ar se escapar e deixar entrar a água sem pressão. O precioso líquido, fundamental à vida, caía na caldeira feita de zinco, passando por um tubo até à caneja, rumo aos produtos agrícolas cultivados, sobretudo milheirais com feijoeiros à mistura. Também batatais e hortaliças.
Vaca atrelada, olhos vendados para não perder o norte, treinada com cuidado e paciência, ali andava à roda do poço, horas e horas, incitada frequentemente para não "adormecer", sem queixas nem azedumes que se vissem.
Quem por perto ficava de vigia, muitas vezes crianças e jovens, mas ainda alguns mais velhos sem forças para tarefas mais pesadas, deitava lamas da nossa ria, rapadas na maré baixa, na água que entrava na caneja principal. As lamas deixavam na caneja uma película gordurosa que impedia a infiltração da água, antes de chegar ao destino. Sem as lamas, muita água se perderia.
O poço, nos meus tempos de menino, era construído em terreno com extensão e destinos agrícolas que o justificassem. Não havia poços em culturas de cereais, mas não podiam faltar nos milheirais, batatais ou produtos hortícolas. Sem rega, a tempo e horas, a produção seria diminuta, a não ser que houvesse chuva com alguma regularidade.
Vi nascer alguns poços de rega, como um que existiu no meu quintal. Um ferreiro construiu o engenho e um mestre de obras iniciou a construção do poço com alguma profundidade, para, mais tarde, depois de bem consolidado, o fazerem descer, escavando debaixo da parede redonda, até atingir a posição desejada, regulada pela altura e quantidade de água. No dia de o poço descer, vários homens de pá e enxada retiravam a areia debaixo da parede circular, com rigor calculado para haver equilíbrio. Outros, de balde em punho, atiravam a água borda fora. Mais tarde, um motor fazia esse serviço.
O engenho era feito pelos ferreiros. Conheci dois aqui perto da Casa Gafanhoa: Armando São Romão e Luís Semião. Mas haveria outros, até porque os estaleiros, mas não só, necessitavam deles.
Na hora de partilhas, alguns terrenos de áreas maiores eram repartidos pelos herdeiros que estabeleciam regras para a utilização do poço de rega. Depois, com a evolução natural dos tempos, os poços foram derrotados pelos motores que funcionavam a petróleo. Um tubo de alguma altura, espetado no solo, era praticamente inesgotável. Os poços, com umas horas de rega, exigiam um tempo de espera até ficarem ao nível normal.
Fernando Martins
Nota: O poço em exposição na Casa Gafanhoa só apresenta a parte superior.