segunda-feira, 23 de maio de 2022

Libertar-se da vontade de dominar

Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO

Apesar de grandes mudanças em muitos sectores da vida moderna, não se ataca o fosso entre ricos e miseráveis. Procura-se insistir na mentira de que é a meritocracia que faz os ricos e a preguiça faz os pobres, os pouco ambiciosos.

1. O encontro pacífico entre povos e culturas supõe um processo de libertação da vontade de dominar o outro. Procurar libertar-se do desejo de dominar é o bom caminho para o triunfo da fraternidade e da amizade social, em todas as situações.
Perante o fenómeno da globalização, o Papa João Paulo II, embora considerasse esse fenómeno irreversível, sublinhava que precisava de ser orientado na direcção da equidade e da solidariedade, para não se tornar um sistema de dominação e colonização.
O mito bíblico da Torre de Babel, ao contrário do que muitos dizem, representa o veemente protesto de Deus contra o extermínio da diversidade de línguas e culturas. Não suporta o totalitarismo de uma só língua, de uma só cultura [1]. A narrativa do Pentecostes, nos Actos dos Apóstolos, diz algo de extraordinário: nenhum povo precisava de negar a sua originalidade cultural, a sua própria língua, para entender a voz do Espírito. A graça divina não nega a natureza. É a sua cura e sublimação. Todos se admiravam que a mensagem dos apóstolos estivesse a ser escutada, por cada um, na sua própria língua. Ficou assim indicado, desde o começo, que a linguagem da Igreja cristã devia tornar-se sempre uma linguagem inculturada [2]. O que também foi muitas vezes esquecido.
As narrativas míticas, das referidas passagens bíblicas, não são um delírio da imaginação, mas o fruto da sua criatividade paradoxal. Como escreveu Paul Ricoeur, o mito dá que pensar e repensar a complexidade de um fenómeno carregado de enigmas. É uma provocação, uma arte de sugerir e resistir à banalidade das explicações simplistas.
Além disso, nos Actos dos Apóstolos, aparece um modo ideal e voluntário de vida comunitária, segundo o qual, não havia indigentes, entre os seus membros, porque o fruto da partilha dos bens de todos era distribuído, a cada um, segundo as suas necessidades [3].
Essa narrativa da partilha dos bens não era uma imposição, era a respiração social do Evangelho. Não era uma proposta de solução para todos os problemas sociais e económicos do cristianismo nascente, mas ficou para sempre como referência para as reformas das instituições e dos movimentos cristãos. A solidariedade entre comunidades, mesmo muito distantes, era uma prática que S. Paulo não só recomendava, mas que ele próprio praticava. Como dizia, era importante que as mais favorecidas não esquecessem as mais débeis.

2. Não nos fazia mal nenhum revisitar algumas parábolas do Novo Testamento, para o que agora procuro. Jesus – já o disse muitas vezes nestas crónicas – resistiu às propostas de uma carreira pessoal de poder de dominação económica, política e religiosa. Ao proclamar, na sinagoga, uma passagem libertária do livro do profeta Isaías, sentiu-se identificado com ela e adoptou-a como programa do seu futuro: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano de graça do Senhor [4].
O seu interesse é o de manifestar um Deus de pura graça, de pura misericórdia, para secar a própria raiz de um mundo dividido entre vencedores e perdedores, como diria Michael J. Sandel [5]. O que preocupa o Nazareno não são as pessoas de sucesso, mas os excluídos, seja qual for o motivo da exclusão. Não são os sãos que precisam de médico, mas os doentes de todas as formas de doença: não vim chamar os justos, mas os pecadores ou, melhor, os classificados como pecadores. Todas as instituições, a começar pelo dia sagrado do Sábado, são para o ser humano e não o ser humano para as instituições [6].
Quem julga o mundo são os excluídos, os abandonados, os marginalizados. A narrativa da parábola do rico que se vestia de púrpura e linho fino e todos os dias se banqueteava com requinte e do pobre Lázaro que jazia à sua porta, coberto de úlceras, e que bem desejava comer as migalhas que caiam da mesa do rico, mas só os cães vinham lamber-lhe as úlceras, é construída para mostrar que não há redenção possível, nem neste mundo nem no futuro, para quem teima em manter este abismo [7].
O desenlace desta parábola só fala da justiça, mas o mesmo S. Lucas apresenta outra em que não há eternos perdidos. Não tendo espaço para a reproduzir, aqui, recomendo a sua leitura na íntegra [8].
Nessa parábola, o evangelista constrói uma ficção de um pai com dois filhos. O mais novo pediu a sua herança e partiu para longe, onde gastou tudo numa vida de estroina que o levou à miséria das misérias para um judeu: ir guardar porcos e nem sequer lhe era permitido matar a fome com as alfarrobas que eles comiam. Lembrou-se, então, do que tinha perdido e decidiu tentar regressar a casa, com discurso preparado: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros. Quando ainda estava longe, o pai viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos. O pai nem sequer quis ouvir a sua história de miséria. Pediu aos servos que, depressa, o vestissem com a melhor túnica, anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado. E começou a festa.
Quem não gostou nada da atitude do pai foi o filho mais velho e, encolerizado, não quis entrar no banquete. O pai teve de lhe pedir por favor e de ouvir as duras palavras de ressentimento: filho, tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.
Afinal, o filho mais velho, apesar de estar sempre com o pai, não sabia o pai que tinha. Confiava apenas nos seus próprios méritos.

3. Na primeira parábola, temos o retrato escandaloso que existe ainda no nosso mundo: o abismo entre o luxo de uns e a miséria de outros, sem vontade política de o alterar. Apesar de grandes mudanças em muitos sectores da vida moderna, não se ataca o fosso entre ricos e miseráveis. Procura-se insistir na mentira de que é a meritocracia que faz os ricos e a preguiça faz os pobres, os pouco ambiciosos. É um mundo sem compaixão e que recursa mudar.
Na segunda, procura-se afirmar um Deus de pura misericórdia, que respeita sem limites a nossa liberdade e nunca se esquece dos que parecem perdidos. Na parábola que julga o mundo [9], exige que todos desenvolvam os seus talentos, não para exibir os seus méritos, mas para estarem ao serviço daqueles que, por muitas razões, não tiveram sorte na vida. Deus quer fazer de nós a providência uns dos outros.

Frei >Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Gn 11, 1-9
[2] Act 2, 1-13
[3] Act 4, 34-35; 2, 42-46
[4] Lc 4, 18-19
[5] A Tirania do Mérito. O que aconteceu ao bem comum? Editorial Presença, 2022
[6] Cf. Mc 2
[7] Lc 16, 19-31
[8] Lc 15, 11-32
[9] Mt 25

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