no Público
Dizer-se cristão e católico, fomentando o discurso do ódio e da exclusão, como está a acontecer um pouco por toda a parte, é um crime que importa denunciar sem condescendência.
Ao retomar as crónicas dominicais sobre o fenómeno religioso, que a generosa hospitalidade do PÚBLICO me possibilita, quero lembrar as referências que me obrigam a uma permanente reinterpretação desse fenómeno, num mundo em mudanças imprevisíveis que vão questionando as configurações das heranças religiosas e despertando para a urgência de encontrar caminhos de renovada esperança, quando parece que estão a ruir todos os fundamentos.
Começo por algumas passagens do Novo Testamento que, longe de impedirem o confronto com outras heranças culturais, abrem caminhos para o incontornável pluralismo religioso. O Evangelho segundo S. João abre com um poema, no qual, de forma paradoxal, o Verbo de Deus incarna a fragilidade humana, vincando bem, no entanto, que a Deus nunca ninguém O viu. É nessa fragilidade que é superada a estreiteza da Lei dada por Moisés. A “graça e a verdade” vieram por Jesus Cristo que não exclui ninguém [1].
Nos Actos dos Apóstolos, S. Paulo vai alargar as referências às heranças de um mundo, de uma cultura estranha ao judaísmo. Em Atenas, em vez de ficar escandalizado com a exuberância das muitas expressões religiosas, faz o seu elogio de uma forma muito astuciosa: “Atenienses, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: Ao Deus desconhecido. Pois bem! Aquele que venerais sem o conhecer é esse que eu venho anunciar. De facto, é nele que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: Pois nós somos também da sua raça. Se nós somos da raça de Deus, não devemos pensar que a Divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e engenho humanos.” [2]
As instituições religiosas, mesmo as mais sagradas como o Sábado, em que Jesus de Nazaré foi educado, devem ser para a libertação e alegria do ser humano e não para o escravizar [3]. No Evangelho de S. João, Jesus não fica por aqui. É, em diálogo com uma mulher, a samaritana, que vai revelar que a presença amorosa de Deus não está limitada por nenhum lugar de culto: vem a hora – e é já – em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade. O ser humano aberto ao mistério é o verdadeiro templo de Deus [4].
O que julga a autenticidade da religião são as atitudes concretas em relação aos mais necessitados e abandonados. É uma religião de olhos abertos para o mundo dos esquecidos, dos considerados sem interesse e sem valor, os descartáveis, como diz o Papa Francisco [5].
A Primeira Carta de S. João revela as razões desta alteração religiosa: Deus é amor e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele. Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte. Se alguém disser “Eu amo a Deus”, mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê [6].
Neste Domingo, é proclamada uma passagem da Carta de S. Tiago que destaca: a fé sem obras é uma fé morta. As obras da fé são ditadas pela urgência dos pobres que deviam ser os verdadeiros privilegiados das comunidades cristãs [7].
Dizer-se cristão e católico, fomentando o discurso do ódio e da exclusão, como está a acontecer um pouco por toda a parte, é um crime que importa denunciar sem condescendência. Não basta denunciar. Importa reconhecer e apoiar as boas práticas, tanto a nível dos cuidados que a pandemia impõe em todo o mundo, especialmente nos países mais pobres, como as do acolhimento fraterno dos refugiados e as dos movimentos que procuram alterar as políticas ambientais.
2. Seria um erro pensar que basta repetir estes textos. Para eles poderem desafiar o presente é preciso escutar o presente com as ciências humanas. Doutro modo, somos papagaios da Bíblia e não intérpretes actuantes no nosso presente. O Papa Francisco não se contenta em agitar o mundo católico, como seria normal. Procura reanimar e intensificar as relações ecuménicas entre as igrejas cristãs e envolver as diferentes religiões e todas as pessoas de boa vontade, crentes ou não, para que ninguém fique para trás e para que ninguém se julgue dispensado de dar o seu contributo para o reconhecimento de que somos todos irmãos, Fratelli Tutti.
Há uma questão que tem percorrido a história das religiões e que não pode continuar a ser adiada por ninguém: é a questão da universalidade da liberdade religiosa. Não é fatal que seja assim. O conhecimento do percurso da Igreja Católica poderá ser um bom exemplo.
3. No século XIX, a situação política muito volátil dos países católicos da Europa e da América Latina, sucedendo à estabilidade da “união do trono e do altar”, que tinha prevalecido durante os dois últimos séculos, tinha levado os teólogos católicos a definir claramente as relações entre a Igreja e o Estado. O postulado fundamental desta doutrina era o seguinte: só a verdade tem direito à liberdade, ou, dito em termos negativos, o erro não goza de nenhum direito. No fundo, esta posição equivalia a dizer: se a maioria dos cidadãos são católicos, o Estado tem o dever de professar a fé católica e de fazer tudo o que seja razoável para a promover e defender. Isto significa também o seu dever de desencorajar ou até de impedir as outras religiões, o que podia implicar a recusa de certos direitos cívicos aos seus aderentes. No entanto, em certos casos, para evitar males maiores, podia tornar-se necessário tolerar outras religiões e permitir a sua prática livre. Mas, quando os católicos representam apenas uma minoria da população, invoca-se a lei natural para impor ao Estado que lhes garanta um pleno direito de cidadania, assim como a liberdade de praticar a sua religião, porque o dever do Estado é o de promover a verdade que é apanágio da Igreja Católica.
Era, ainda no século XX, essa a doutrina ensinada pelos manuais da teologia católica dos seminários do mundo inteiro. Era também essa doutrina que inspirava as concordatas negociadas pela Santa Sé. Porém, nem todos os católicos estavam convencidos da justeza destas teses, nomeadamente, depois do desenvolvimento da democracia cristã, após a Segunda Guerra Mundial.
Essa longa ficção esquecia uma banalidade: só o ser humano é sujeito de direitos e deveres e não a verdade ou o erro.
O Santo Ofício mantinha essa ficção e vigiava para que a situação não fosse alterada, mas não conseguiu evitar a convocatória do Concílio Vaticano II nem que o Papa João XXIII nomeasse, como perito do Concílio, um dos grandes opositores dessa doutrina e defensor da liberdade religiosa, John C. Murray [8].
Essa questão percorreu todas as sessões conciliares. Foi aprovada no último dia do Concílio: Dignitatis Humanae, declaração sobre a liberdade religiosa.
A conquista da liberdade religiosa pode ser dura. Não é impossível.
Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Jo 1,14-18
[2] Act 17, 22-29
[3] Mc 2, 23-28
[4] Jo 4, 1-42
[5] Mt 25, 31-46
[6] 1Jo 3 – 4
[7] Tg 2, 14-18
[8] Cf. John W. O’Malley, L’Événement Vatican II, Edição Lessius, 2011, pág. 289-297