sábado, 18 de junho de 2016

A Igreja e os direitos humanos

Crónica de Anselmo Borges 


1 Em jornais espanhóis do século XIX, apareciam anúncios assim: "Vende-se uma pretita de 9 anos, natural de Havana, sã e sem manchas, que passou os testes da varicela e do sarampo, ágil, com boa presença e disposta a aprender toda a espécie de trabalhos"; "vende-se com equidade uma negra de 30 anos, robusta, fiel e trabalhadora, sabe fazer todas as lides de uma casa". Leio esta informação em L. González-Carvajal, que vou seguir, no seu Curso de Moral Social. Como foi possível a gente vender gente?

2 Foi lentamente que se tomou consciência da dignidade sagrada de todos os seres humanos. A Igreja institucional não foi de modo nenhum exemplar, mas é preciso reconhecer que essa consciência se dá com base também, e fundamental, no Evangelho, ao declarar que todos são filhos de Deus. E há o Génesis, dizendo que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus.
Nesta marcha lenta dos "direitos fundamentais do Homem", encontramos múltiplos indícios, ainda antes da modernidade. Assim, há quem queira ver um antecedente na famosa Oração Fúnebre de Péricles. Depois, na Idade Média, deparamos com a Magna Charta Libertatum, 1215. Com a Declaração de Direitos (Bill of Rights) do Bom Povo de Virgínia, de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adoptada pela Assembleia Nacional Francesa em 1789, assistimos a um salto, mas, de qualquer modo, visavam apenas determinadas categorias de pessoas.
Diferente é a Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 10 de Dezembro de 1948, em Paris. Dos 48 Estados então representados nas Nações Unidas, nenhum votou contra, 40 votaram a favor, oito abstiveram-se: os seis países comunistas, a África do Sul e a Arábia Saudita. Nos artigos 1 e 2, lê-se: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos" e podem invocar os direitos e liberdades desta Declaração, "sem distinção alguma de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou qualquer outra situação". Numa vinheta de 1998, no El País, aparece o próprio Deus a exclamar: "Que preâmbulo! Não tinha lido nada de tão bom desde o Sermão da Montanha."
A Declaração foi sendo completada com dois pactos: o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que entraram em vigor em 1976. Há quem pense que "estes convénios poderiam, com a Carta das Nações Unidas, ser o gérmen de uma futura Constituição universal".

3 Quatro notas dos direitos humanos: são direitos atribuídos a todo o ser humano pelo simples facto de o ser. São, pois, direitos naturais (os Estados não os concedem, apenas os reconhecem), invioláveis, inalienáveis, universais.
Segundo uma fórmula proposta por Karel Vasak, agrupamo-los em "três gerações": a) A primeira geração, sob o nome de "liberdades" (liberdade de consciência, de expressão, de imprensa, de associação, de religião...); b) Desde o século XIX, reivindicação de direitos com a palavra "libertações": Pacto Internacional de Direitos Sociais, Económicos e Culturais; c) Direitos de terceira geração: os que têm como titulares os povos e inclusivamente a humanidade inteira: direito ao desenvolvimento, direito a um meio ambiente são, direito à paz, direito à identidade cultural; d) E já se fala na quarta geração: note-se que a Declaração Universal não é "dos", mas "de" Direitos Humanos, portanto, não estão lá todos.

4 Na fundamentação dos direitos humanos, encontramos inevitavelmente as famosas afirmações de Kant: "Tudo no mundo tem um preço; só o Homem tem dignidade." "O Homem é fim, e nunca meio ou instrumento; portanto, independentemente da sua maior ou menor utilidade, reclama um respeito incondicional." Kant está a falar da liberdade enquanto autoposse, que nos distingue das coisas e dos animais e se explicita na consciência do dever.
Para ser fim, o Homem tem de ter nele algo de absoluto, incondicional, infinito...Vejo a prova desse infinito no facto de ele, frágil e finito, colocar, pela sua própria constituição e independentemente da resposta que lhe dê, positiva ou negativa, a pergunta ao Infinito pelo Infinito, se se quiser, a pergunta a Deus por Deus. Então, se tem algo de infinito em si mesmo, que é a pergunta pelo Infinito, o Homem é fim, pois, para lá do Infinito, não há mais nada.

5 E a Igreja? Não faltaram condenações de Pio VI a Pio IX, passando por Gregório XVI, que condenou o indiferentismo, donde brota "aquela absurda e errónea loucura que afirma e defende a todo o custo e para todos a liberdade de consciência". Pio IX, entre outras coisas, condenou o sufrágio universal a liberdade religiosa e a liberdade de pensamento e imprensa. Felizmente, desde João XXIII, a Igreja tornou-se sua defensora acérrima, mas ainda falta caminho para cumpri-los todos no seu próprio seio.

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