Crónica de Anselmo Borges
«E o Estado fica com mais
um encargo: dar a morte?»
1. O debate está aí. Só espero que seja sério, sereno, argumentado, sem pressas, distinguindo muito bem as questões e os conceitos. Por exemplo, todos querem a eutanásia, sim, no sentido etimológico da palavra: uma "boa morte" e também uma "morte assistida", com cuidados médicos adequados, presença afectiva, moral, espiritual. E é bom reflectir que, quando o que está em causa é viver ou morrer, não se pode pretender impor-se aos outros, para vencer a todo o custo. Aqui, não há vencedores nem vencidos: todos seremos vencidos. Mesmo para os crentes, que acreditam na vida para lá da morte, neste mundo, a morte, irreversível, é o poder que a todos derrota. Daí, o primado do combate pela vida.
2. Neste e noutros casos, há muitos que parece terem medo de referendos. Chamo a atenção para que, na base da recusa de referendar a questão, pode haver razões que posso compreender. Mas quem teme o referendo pergunte lealmente a si mesmo se, em última análise, não é também por medo de ver perdida a sua causa e por julgar que o saber sobre a questão e o modo correcto de decidir está do seu lado: de um lado - partidos (o tema não foi debatido na campanha eleitoral) e Parlamento -, estão os iluminados e, do outro, o povo ignaro, que não sabe decidir sobre o que lhe convém nem o que deve ser feito, seguindo a razão.
3. Sobre este tema, escrevi no meu livro Corpo e Transcendência. Aí cito textos que obrigam a reflectir, também do ponto de vista cristão e católico. De facto, embora a ética e a política sejam autónomas em relação à religião, não deixa de haver pontos de contacto. Assim, o teólogo A. Torres Queiruga, para quem autonomia e teonomia acabam por coincidir, escreveu, no contexto do caso bem conhecido de Ramón Sampedro: "Neste caso, como no da eutanásia ou de toda a grande decisão moral, do que se trata antes de mais e sobretudo é de buscar o bem da pessoa (da pessoa-em-sociedade, é claro). Para saber o que é que Deus quer no caso de Ramón Sampedro, nas suas circunstâncias irrepetíveis e concretas, a fé não dispõe, em última análise, de outro critério que não seja o de procurar descobrir o que é bom para ele como pessoa humana. De facto, é estritamente equivalente afirmar "isto é bom para Ramón Sampedro" e "isto é o que Deus quer para Ramón Sampedro"."
De qualquer modo, pergunta essencial é: qual é o limite para a autonomia humana no direito de dispor responsavelmente (não arbitrariamente) da sua morte? O teólogo H.M. Kuitert escreveu: "O direito à vida e o direito à morte é o núcleo da autodeterminação, é um direito inalienável e inclui a liberdade de decidir sobre o quando e o como do nosso fim, em vez de entregar essa decisão a outros ou ao resultado da intervenção médica." Se se aceita hoje como normal a intervenção livre e responsável no início da vida, com a paternidade e a maternidade responsáveis, porque é que em determinadas circunstâncias se não há-de aceitar como legítima também a intervenção responsável no termo da vida? É evidente que nenhum ser humano pode ser obrigado ou pressionado a morrer um dia ou uma hora antes que seja. Mas, por outro lado, deve alguém ser obrigado em todas e quaisquer circunstâncias a continuar a viver? Se a vida toda foi entregue por Deus à liberdade responsável do ser humano, porque é que essa liberdade, numa decisão única da própria consciência, deverá ser tirada no que se refere à última fase da vida, em situações extremas? Será de reprovar moralmente e condenar criminalmente a ajuda para pôr termo à sua vida, quando, após diagnóstico inquestionável, ameaçado, por exemplo, de demência senil talvez por longos anos, alguém quer despedir-se da vida com dignidade? É neste contexto que o famoso teólogo Hans Küng, que, após uma enorme obra teológica, quer morrer em paz, disse recentemente em Glücklich sterben (Morrer feliz): "O ser humano tem o direito de morrer quando não tem nenhuma esperança de continuar a levar o que, no seu entender, é uma existência humana."
4. Despenalizar a eutanásia? Trata-se de uma questão civilizacional, e é preciso estar bem consciente dos perigos dramáticos e temíveis que se corre. Por exemplo, com uma lei aberta à eutanásia e ao suicídio assistido, não poderá surgir depois uma pressão disfarçada e subtil sobre os doentes e os velhos, que acabará por ser interiorizada por eles, para que exerçam o direito à eutanásia "voluntária" ou ao suicídio medicamente assistido? Não se aninha aí o risco de enormes equívocos na própria terminologia: "morte por compaixão", "mercy killing", "Gnadentod"? Precisamente porque é imisericordiosa, já que assenta no economicismo e no hedonismo, a nossa sociedade cada vez menos humanista, não tendo tempo nem solidariedade compassiva para com os mais fracos - os doentes graves e os moribundos -, atira-os para o que chama a "morte misericordiosa", a "morte por compaixão"? E o Estado fica com mais um encargo: dar a morte?