sábado, 30 de janeiro de 2016

O grande enigma (1)

Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias


Todo o ser humano
deseja e quer viver


É possível que Deus exista, mas também pode não existir. Ninguém pode dizer que sabe que Deus existe, mas também ninguém pode dizer que sabe que Deus não existe. Ninguém sabe se na morte encontramos a vida na sua plenitude em Deus ou se, pelo contrário, para cada pessoa tudo acaba na morte. Este é o grande enigma da vida de cada homem, de cada mulher. É o enigma da verdade metafísica última do universo: Deus como fundamento último ou um puro mundo sem Deus? Questão decisiva, no sentido pleno da palavra: que decide, em última análise, a existência de cada um. Questão essencial, porque, com Deus, dá-se a esperança da vida plena para lá da morte; num puro mundo sem Deus, a existência desemboca na aniquilação total enquanto pessoa. O ser humano é sempre confrontado com a eternidade: a eternidade da plenitude em Deus ou a eternidade do nada.
É com esta incerteza metafísica, num mundo enigmático, que se confronta, numa obra notável, acabada de publicar - El Gran Enigma: Ateos y Creyentes ante la Incertidumbre del más Allá ("O grande enigma. Ateus e crentes perante a incerteza do Além) -, o jesuíta Javier Monserrat, neurocientista, filósofo e teólogo.

1. Que todo o ser humano deseja e quer é viver. Pela sua própria constituição, é desejo de vida, vida plena, de tal modo que põe a questão da esperança para lá da morte. Vive, tentando realizar no mundo as suas possibilidades. E depara-se com o enigma do universo, ao aperceber-se de que, para lá da "aparência", do que se mostra do mundo onde decorre a sua vida, há um fundo abismal, metafísico, que o leva a perguntar pela sua verdade última. Mas precisamente essa verdade última do universo não é evidente, patente, nem para os sentidos nem para a razão, o que constitui fonte de incerteza e, consequentemente, de insegurança e inquietação metafísica. O universo apresenta-se como tendo um fundo metafísico, que está para lá da experiência física imediata tal como o homem a pode atingir. Mas precisamente esse fundo metafísico constitui o grande enigma: o que é verdadeiramente? "O que é o fundo das coisas? O que é que a imensidão do espaço-tempo contém? Qual é a natureza de uma matéria insondável na sua profundidade abissal?"

2. Na história da humanidade, encontramos desde sempre a ideia religiosa: o universo, desde as suas dimensões metafísicas desconhecidas, está dominado por um Ser pessoal, ou Seres pessoais, a que se podia recorrer e que poderia salvar para lá da morte. A construção e vivência das ideias religiosas, com Deus e a referência a um para lá da morte, acompanham a humanidade desde a pré-história. Com as grandes religiões, "consumou-se pouco a pouco, e de diversos modos, a introdução do metafísico na vida humana." A referência explícita ao metafísico entrou na história através das construções religiosas. E embora nunca ninguém tenha visto Deus, "o conteúdo das crenças religiosas e a sua ideia do divino chegaram a aceitar-se como algo quase evidente, que ninguém podia pôr em dúvida sem submeter-se à rejeição social". As sociedades entraram num dogmatismo teísta: a verdade religiosa era inquestionável, assegurada pela razão, as emoções, os interesses vitais, a tradição, a coesão social.
O próprio cristianismo, dentro dos pressupostos filosóficos e sociopolíticos do universo greco-romano, interpretou-se dogmaticamente. O paradigma greco-romano impôs-se como teocêntrico - "a razão conhecia com certeza absoluta a existência de Deus e a vida humana só podia ter Deus como centro essencial de referência, isto é, não era possível uma ideia do homem sem Deus" - e teocrático - "Deus era o único ponto de referência possível para organizar a sociedade civil e entender a origem do princípio de autoridade: na lei natural divina ou na lei positiva de Deus pela revelação".

3. Mesmo assim, houve sempre seres humanos que desconfiaram desta convicção. Mas era muito difícil a exposição de posições contrárias, pois contradizia o dogmatismo dominante, que reprimia os dissidentes.
Foi a partir dos séculos XV, XVI e XVII que teve início o movimento cultural da modernidade, sendo ele a tornar possível que "pela primeira vez se formulasse uma alternativa rigorosa ao pensamento teísta. A possibilidade de entender o universo sem Deus e, por conseguinte, viver uma vida individual e social sem Deus, na imanência do mundo, adquiriu carta de cidadania".

4. Depois, deu-se o enfrentamento de dois dogmatismos: o dogmatismo religioso e o dogmatismo ateu. Nestas condições de confronto, não era possível a mútua compreensão. Mas no século XX, com a nova ciência, operou-se uma mudança crucial, que obrigou a passar da modernidade dogmática à modernidade crítica, e o enigma do universo e a incerteza metafísica abriram ao teísmo e ao ateísmo críticos: é possível que Deus exista e é possível um puro mundo sem Deus. Com razões.



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