Crónica de Maria Donzília Almeida
Foi após ter conhecido Angela Gillian, no último quartel do século XX, mais precisamente em 1976, que fiquei mais sensível ao papel da mulher na sociedade. Foi aquela socióloga americana convidada pela Faculdade de letras da Universidade de Coimbra para ministrar a cadeira de “História das Ideias e da Cultura na América” aos licenciandos em Literatura Norteamericana.
Era uma mulher vanguardista de ascendência negra que personificava a luta, dos seus congéneres americanos, pela igualdade de direitos e a sua inserção ativa na sociedade e na política. Vivia-se, nos Estados Unidos, o Bicentenário da Declaração da Independência, proclamada em 1776. Desde que as feministas americanas quiseram mudar o nome à história, propondo Herstory em vez de History…eu fiquei mais atenta à problemática da mulher!
Uma que mereceu a minha atenção e interesse foi Maria da Conceição Vassalo e Silva da Cunha Lamas nascida em Torres Novas, a 6 de outubro de 1893, que ficou para a história como Maria Lamas.
No final do século XIX e no primeiro terço do século XX, em que a menina nasceu e se tornou mulher, a vida portuguesa sofre grandes convulsões. De salientar a implantação da República em 1910 e dezasseis depois a imposição da ditadura. Nesta época, a situação das populações é muito afetada pela industrialização, pela migração dos campos para as cidades e a emigração para o estrangeiro. Agrava-se a situação das mulheres, pois a sua participação no mundo do trabalho assume novas exigências, pois começam a constituir uma parte importante da mão-de-obra industrial, para além do seu papel no setor agrícola. No entanto, continuam a ser discriminadas em todas as vertentes da vida política e económica e mesmo nos mais elementares direitos cívicos. O direito ao voto e o acesso à instrução são dois campos em que a desigualdade de direitos entre homens e mulheres é notória.
É de referir que a taxa de analfabetismo feminino em Portugal em 1900 era de 85,4 %, e que em 1930 tinha baixado apenas 10%, para 74,3. Quanto ao ensino secundário, criado em 1888, as raparigas em 1908, eram 9,8% da população liceal e 24,20 % em 1920. A implantação da República, apesar dos ideais republicanos, não trouxe alteração da situação das mulheres, neste campo. Houve avanços e recuos na legislação e faltou, na prática, um plano consistente. Sob o Estado Novo continuou a avançar-se com dificuldade. Só devido à pressão internacional é que avançou a alfabetização em maior escala, mas o ensino obrigatório nem sempre abrangeu o sexo feminino. O decreto-lei n.º 40.964, de 31 de Dezembro de 1956, alargou a obrigatoriedade do ensino escolar até à 4.ª classe, só para o sexo masculino, situação esta que só foi corrigida quatro anos depois, com o decreto-lei n.º 42994, de 28 de Maio de 1960.
A participação das mulheres, na vida política, em pé de igualdade com os homens só foi alcançada depois do 25 de Abril, com a promulgação da Constituição de 1976.
Com este pano de fundo, Maria Lamas pugnou pelos seus grandes objetivos: a promoção da mulher nas vertentes mulher e mãe e a defesa da paz. Aprende desde nova o que são os horrores da guerra, tendo o seu primeiro marido a combater na frente da Flandres e no seu trabalho como voluntária da Cruz Vermelha. Começou a escrever poesia desde muito nova, ainda no Colégio das Teresianas e mais tarde escreveu vários romances, nos quais procura evidenciar os dramas do amor romântico, confrontado com o papel de esposa e mãe e com os valores dominantes na sociedade portuguesa. Maria Lamas cultiva a atividade epistolar lutando pelo direito à felicidade, que acompanha a emancipação individual.
Escrevendo na Moda & Bordados reflete a mesma tomada de consciência de luta pelos seus ideais. Ao escrever “As Mulheres do meu País”, mostra uma realidade completamente distinta da visão que o regime pretendia fazer passar na opinião pública. A romancista dá definitivamente lugar à jornalista e à ativista política. Identificando-se assim com os problemas das mulheres em geral, nunca Maria Lamas se assumiu como feminista. Dá grande importância à ideia da maternidade, como realização da mulher, em todas as fases da sua carreira política, defendendo igualmente a manutenção dos traços próprios da feminilidade, no que ela própria dá o exemplo. Foi desta mulher que, ainda em vida, recebeu o nome uma escola do Porto, onde tive o privilégio de lecionar, no ano letivo de 1982/83. Foi o patrono, no feminino, da Escola Preparatória Maria lamas, muito próxima da minha residência na altura, na freguesia de Ramalde. Nesse ano, o grupo de estágio de Português/Inglês manteve uma comunicação epistolar com a escritora, daí resultando uma carta que ficou para a posteridade, emoldurada e colocada na biblioteca escolar. Viria a falecer em dezembro de 1983. Bons tempos que nos trazem, à memória, mulheres de fibra que fizeram história na defesa e promoção da mulher portuguesa. Bem haja!
06.10.2014