quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

RUMO PARA UMA RENOVAÇÃO NECESSÁRIA


Um artigo de António Marcelino

«O Papa traçou para a Igreja o caminho do Concílio: na fidelidade a Deus, unir e não separar; acabar com condenações; marcar uma presença no mundo, inspirada no amor e conduzida pelo diálogo, nunca desprezar este mundo, das pessoas e da natureza criada, antes ver nele a antecipação de Deus, que o criou e viu que era bom e repleto de beleza. Esta dimensão nova, proposta à Igreja, gerou uma expectativa não esperada, por parte de muitos, mesmo não cristãos.»
Logo de início, e na preparação do Concílio, falou-se da necessidade de um novo rosto da Igreja, de uma Igreja de janelas abertas, para que nela possa correr ar fresco. Seria como que um rosto lavado das muitas lamas do tempo, um rosto rejuvenescido, que outro não podia ser senão o rosto de Cristo. Foi neste sentido que, segundo o propósito de João XXIII, o Concílio devia ajudar a comunidade eclesial a tornar-se, como nos seus inícios e nos tempos da sua maior influência evangelizadora, uma Igreja serva e pobre, na esperança de se tornar sempre mais “mãe e mestra”. Só assim poderá ser sinal e estímulo de vida nova. Inspirado na Palavra de Deus e olhando a história, o Concílio encontraria o caminho. Uma necessidade que persiste ainda hoje. 
A Igreja não podia mais ser aos olhos de fora um “cabide onde se dependuram fatos que já não se usam”, mas a expressão viva de um amor, capaz de renovar as pessoas e a sociedade. Por isso, tinha de reencontrar o seu rumo na fidelidade à missão que lhe fora confiada desde o início. Não lhe faltavam energias interiores para poder garantir o êxito desta tarefa. Tudo dependeria agora dos mediadores conciliares e da Igreja no seu conjunto.
As comissões preparatórias constituíram-se e, para isso, se contou com a experiência provada de bispos de fora de Roma, inquietos e inconformados, como o Cardeal Suenens da Bélgica, e Helder Câmara, do Brasil. Teólogos, antes marginalizados, foram chamados para trabalhar nestas comissões. Vieram, assim, para uma terra que antes os expulsara, Henri de Lubac, Yves Congar e tantos outros. 
Apesar do entusiasmo reinante, o arrancar dos trabalhos em comum não foi fácil. Havia esquinas a esbater e relações a sanar. Ninguém terá pensado em desistir, porque o amor à Igreja e a vontade de renovação pesavam mais que as dificuldades sentidas. Por outro lado, o exemplo de João XXIII, com a esperança que manifestava e a sua decisão de ir para a frente, contagiava a todos. Não se coibiu de intervir, sempre que sentiu que era necessário fazê-lo. E fê-lo, logo de início, para ultrapassar impasses.
A realização de um concílio ecuménico, do qual, ao tempo, ninguém tinha experiência direta, foi-se tornando uma pedagogia de ação para todos os que tinham vontade de aprender e de andar caminhos novos. Muitas coisas tiveram, então, de se solucionar, desde como tornar a Basílica de S. Pedro sala conciliar, até providenciar hospedagem a todos os bispos do mundo, convocados para Roma. Porém, o mais difícil, dada a história de séculos de uma Igreja centralizadora e de cariz ocidental, seria sempre a conversão das mentalidades, a aceitação das diferenças, a abertura ecuménica, a sensibilidade às novas culturas, o sair do campo seguro para o campo aberto dos confrontos inevitáveis de uma sociedade e de uma Igreja plural. Haviam de se deixar experiências rotineiras e sem alma, e abrir-se à ação do Espírito. É o Espírito que esclarece, associa, estimula, faz cair os muros que dividem, leva o amor a novas experiências, ajuda a fazer um caminho viável, onde, antes, os escombros e o lixo impediam de caminhar.
O Papa traçou para a Igreja o caminho do Concílio: na fidelidade a Deus, unir e não separar; acabar com condenações; marcar uma presença no mundo, inspirada no amor e conduzida pelo diálogo, nunca desprezar este mundo, das pessoas e da natureza criada, antes ver nele a antecipação de Deus, que o criou e viu que era bom e repleto de beleza. Esta dimensão nova, proposta à Igreja, gerou uma expectativa não esperada, por parte de muitos, mesmo não cristãos. Era de estranhar este facto, dado que se tratava de um acontecimento que, em si mesmo, apenas dizia respeito à Igreja Católica, que, apesar de ferida por muitas mazelas, guardava consciência do seu dever e gozava de um prestígio, que não podia alienar. Recordo como na década de cinquenta, em Roma, se realizavam congressos internacionais e aí acorriam cientistas e pensadores para ouvir a palavra apreciada de Pio XII, sobre problemas novos como o transplante de órgãos vitais, as teorias da “guerra justa”, os caminhos pretendidos para a Europa… Nada disto podia ser esquecido por quem preparava o Concílio e o não devia ver como uma supremacia de poder, mas antes, como expressão de serviço solidário a um mundo novo que cada dia se afirmava mais na sua autonomia.

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