sábado, 5 de dezembro de 2009

Deus faz o mundo fazer-se e fazer o ser humano


Teilhard de Chardin

O Homem na evolução

A tese da evolução não colide de modo nenhum com a fé. Desde que não vão além dos seus limites e se coloquem na respectiva perspectiva de leitura da realidade, ciência e religião dialogarão com proveito mútuo. Foi assim que o famoso jesuíta Teilhard de Chardin, paleontólogo de renome, pôde, apesar da incompreensão da Igreja oficial da altura, reler a sua fé cristã no quadro da evolução. E também Darwin não viu incompatibilidade entre a criação e a evolução. Termina assim A origem das espécies: "O resultado directo desta guerra da natureza que se traduz pela fome e pela morte é, pois, o facto mais admirável que podemos conceber, a saber, a produção dos animais superiores. Não há uma verdadeira grandeza neste modo de encarar a vida com os seus poderes diversos atribuída originariamente pelo Criador a um pequeno número de formas ou mesmo a uma só? Ora, uma quantidade infinita de belas e admiráveis formas, saídas de um começo tão simples, não cessou de se desenvolver e desenvolve-se ainda." E, em A origem do homem, reconhece que este, a partir de um certo grau de desenvolvimento, foi dotado da "nobre fé na existência de um Deus omnipotente", de um "Criador e Governador do Universo", cuja realidade foi "afirmada por algumas das mais altas inteligências que alguma vez existiram".


Há uma pergunta que o ser humano inevitavelmente põe e a que a ciência não pode responder, pois tem a ver com o fundamento e o sentido último da realidade: porque há algo e não nada? E, para ela, em última análise, só há duas respostas em alternativa.

1. Esse fundamento é a própria natureza na sua força criadora de seres que podem ter ideias de todas as coisas, inclusive da natureza, como escreve o filósofo M. Conche: não a "natureza oposta ao espírito ou à história ou à cultura, mas a natureza omni-englobante, a physis grega, que inclui o Homem nela. Essa é a Causa dos seres pensantes no seu efeito". Nesta linha, Edgar Morin, depois de reconhecer o nosso "duplo estatuto" - transportamos em nós a vida, a sua história e as suas tragédias, mas, por outro lado, desenvolvemos a originalidade da cultura, da linguagem e do pensamento que nos tornam estrangeiros, de tal modo que somos filhos e órfãos da natureza -, apresenta a metáfora do matemático Spencer Brown: para conhecer-se, o universo deveria estabelecer uma distância; portanto, "faria sair de si um braço no termo do qual instalaria conhecimento, consciência. Quando este braço o olhasse, o universo teria ganho e perdido. Porque este braço se tornou demasiado estranho para ser o universo tendo consciência de si mesmo". Somos ao mesmo tempo inseparáveis e separados do universo.

2. Sem colidir com a natureza em processo nem com a evolução, o crente religioso afirma Deus transcendente, pessoal e criador, como fundamento último da realidade, que é contingente. É evidente que o cientista, com o seu método científico, não o encontra, pois Deus, no mundo, é transcendente ao mundo e a criação não é o primeiro elo da cadeia da evolução, mas o nome desta em perspectiva metafísico-religiosa.

Qual é então o lugar do acaso e da necessidade? No quadro de leis totalmente rígidas, só poderíamos contar com a repetição, sem novidade; se houvesse só acaso, reinaria o caos, nenhuma forma ou organização poderia perdurar para atingir identidade e o universo não seria susceptível de indagação racional. Da interacção de ambos - lei e acaso - surge a possibilidade da emergência de modos novos de existência. Para os crentes, no jogo do acaso realizam-se potencialidades inscritas na criação pelo desígnio divino. Assim, se, como escreveu o bioquímico e teólogo A. Peacocke, da Universidade de Oxford, "Deus é o fundamento e a fonte última tanto da lei (necessidade) como do acaso", não é necessária uma intervenção especial divina para o aparecimento do Homem: Deus faz o mundo fazer-se e fazer o ser humano.

Anselmo Borges
 
In DN

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