Crónica de Anselmo Borges
Quando se fala em Igreja, é difícil não se ser confrontado com uma situação complexa. De facto, ela aparece frequentemente como uma hierarquia soberana e longínqua, que comanda, que proíbe, uma instituição de poder.
Num primeiro momento, a Igreja pode até surgir como uma hiperorganização, tendo à frente um monarca (o Papa), com os seus ministros (cardeais da Cúria romana), e também altos funcionários (núncios ou embaixadores do Vaticano, espalhados pelo mundo, e bispos) e ainda médios e pequenos funcionários (cónegos, padres).
Será assim? Vejamos. A palavra igreja em português (iglesia em castelhano, église em francês) vem do grego Ekklesía. Ora, a Ekklesía era a assembleia do povo. No alemão (Kirche), no inglês (Church), etc, a origem é outra: Kyrike (forma popular bizantina), com o significado de “pertencente ao Senhor” (Kyrios, em grego) e, por extensão, “casa ou comunidade do Senhor”. De qualquer modo, na dupla etimologia, a Igreja, no Novo Testamento, significa a assembleia daqueles que acreditam em Jesus, que crêem nele como o Messias e se tornaram seus discípulos, querendo segui-lo, fazendo durante a vida o que ele fez e confiando nele na própria morte, esperando também a ressurreição. A Igreja desde o início considerou-se a si mesma como a assembleia dos fiéis a Cristo, dos que pertencem ao Senhor: o sinal dessa pertença é o baptismo e reuniam-se, celebrando, na Ceia, a sua memória, “até que ele venha”.
Evidentemente, sendo constituída por homens e mulheres, a Igreja precisou de dar-se a si mesma o mínimo de organização. Por isso, nela, há diferentes funções e serviços. A palavra correcta é precisamente serviços. O Novo Testamento não fala de hierarquia (poder sagrado), mas de diaconia, que quer dizer ministério, serviço (mas também os Ministros não esqueceram já que ministro é aquele que serve?).
Que é que isto tudo quer dizer? A Igreja não é, na sua raiz, uma hiperorganização, mas assembleia convocada por Deus e reunida em Cristo. Então, o papa, antes de papa, é cristão; o bispo, antes de ser bispo, é cristão, um seguidor de Cristo; um cardeal, um cónego, um padre são discípulos de Cristo, que têm uma missão de serviço. Que devem servir, como qualquer cristão. Não há de um lado a hierarquia que manda e do outro os cristãos leigos que obedecem. Há sim a comunidade dos que acreditam em Cristo, que procuram ser seus discípulos e que obedecem uns aos outros, escutando-se uns aos outros, no Espírito Santo, e que prestam serviços uns aos outros e a todos os homens e mulheres, jovens e crianças do mundo, segundo os dons e as tarefas que foram dados a cada um para bem de todos.
Neste sentido, o cristão não acredita na Igreja, o que faz é professar o Credo cristão – a fé em Deus e no ser humano – em Igreja. Ao serviço eficaz da humanidade toda.
Precisamente neste contexto de serviço, um serviço realista, operativo, pergunta-se se se justifica a existência do Vaticano como Estado. Fica aí uma breve citação de uma profunda reflexão de Paulo Rangel no Posfácio ao meu recente livro A Igreja e o Mundo. Que futuro?, para o qual remeto.
Escreve: “São muitos os que apoiam uma ‘despolitização’ do Vaticano e da Igreja, reconduzindo-o às suas missões puramente espirituais e pastorais. Há quem diga até que, com a diversificação dos sujeitos da sociedade internacional – que agora já não são somente os Estados, à maneira tradicional –, sobejaria espaço para uma entidade como a Igreja Católica ter margem de manobra internacional, sem ter de se alcandorar à natureza de um Estado. A questão é pertinente, insisto. Mas curiosamente são as próprias reflexões de Anselmo Borges sobre os grandes desafios da Humanidade e do mundo que me ajudaram a encontrar uma resposta. Compreendo bem a complexidade da questão e conheço-a até da minha formação como jurista dedicado às coisas do direito público. Quando olho para o Vaticano e para a sua actuação internacional, designadamente através da respectiva rede diplomática e das missões diplomáticas, vejo uma total consonância com o espírito evangélico e com a preocupação com os destinos da Humanidade no seu todo. São incontáveis os exemplos da actuação benigna e benfazeja das missões diplomáticas da Santa Sé e são deveras corajosas as tomadas de posição, mesmo contra as opções de política internacional das maiores potências. Os Papas bem como os serviços diplomáticos da Santa Sé têm naquele reconhecimento jurídico da natureza estadual um instrumento de exercício do seu múnus profético. Um múnus de denúncia, de intermediação, de presença, de influência. A missão profética da Igreja, no plano global – na aludida dimensão comunitária –, é altamente potenciada por esta estrutura institucional. Se recensearmos as grandes encruzilhadas em que se encontra a Humanidade, que o nosso Autor tão bem retrata, é muito fácil perceber como a natureza institucional e estadual da Igreja e da sua cúpula confere uma capacidade de acção, de denúncia e de influência sem paralelo. As negociações entre partes desavindas, as visitas papais, a denúncia de perseguições e violências, a organização de missões de emergência humanitária só são possíveis e só têm alcance e visibilidade em razão daquela vertente político-institucional do Vaticano. A pergunta que tem de se fazer vem a ser a que segue: o mundo estaria melhor e os humanos viveriam melhor se a Igreja não dispusesse deste ‘aparelho’ estadual? É evidente que não.”
Anselmo Borges no DN
Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia