Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Passados dez anos sobre um aviso — na prática, para a opinião pública, a condenação de Andrés Torres Queiruga, pelo episcopado espanhol —, vem ele, numa entrevista à Vida Nueva, esclarecer que a sua teologia quis ser sempre "um serviço livre ao Evangelho" e que, com o Papa Francisco, aparece, felizmente, cada vez mais como "legítima uma crítica sã e livre na Igreja".
Retomo o que então escrevi sobre quem considero — e não sou o único — um dos maiores teólogos católicos vivos. Para mim, A. Torres Queiruga foi e é o teólogo que, de modo mais profundo e conseguido, enfrentou o cristianismo com a modernidade e a modernidade com os cristianismo. Deixo aqui três aspectos que considero nucleares do seu pensamento.
1. Tudo arranca da fé, com razões, no Deus que cria por amor. Deus não criou por causa d'Ele, da sua maior honra e glória, mas apenas por causa das criaturas e da sua felicidade.
Tomada no seu sentido radical, a criação por amor, a partir do nada, implica, por um lado, a presença suma de Deus à sua criação, de tal modo que, se Ele se retirasse, tudo voltava a donde veio, isto é, ao nada, e, por outro, a autonomia das criaturas. Assim, a ciência, a política, a economia, a própria moral, não vão buscar a sua legitimação à religião, pois devem reger-se pelas suas próprias leis.
Segue-se que, sendo tudo milagre o que existe podia pura e simplesmente não existir --, não há milagres no sentido da suspensão das leis que regem a natureza. De facto, os milagres supõem o que não é pensável: um Deus "intervencionista", que está fora do mundo e que, de vez em quando e de forma arbitrária, vem dentro. Ora, Deus, ao mesmo tempo que é infinitamente transcendente ao mundo, é infinitamente presente ao mundo, e é, enquanto Anti-mal, sempre Força infinita criadora e potenciadora das possibilidades das criaturas.
2. Deste modo, torna-se inteligível o conceito fundamental das religiões, a revelação: como sabem os crentes que Deus falou? Tudo o que é autenticamente religioso é resposta humana a perguntas profunda e radicalmente humanas. O que a especifica é o facto de descobrir nela a presença viva de Deus que quer manifestar-nos o seu amor e salvação. Há uma só realidade para crentes e não-crentes. O que acontece é que o crente tem a convicção de que a realidade não se esgota na sua imediatidade empírica, e essa convicção não surge porque é crente, mas porque a própria realidade, para a sua compreensão adequada, se apresenta incluindo uma Presença divina, que não se vê em si mesma, mas está implicada no que se vê. Mediante certas características — a contingência radical, a morte e o protesto contra ela, a exigência de sentido último —, a própria realidade se mostra implicando essa Presença divina como seu fundamento e sentido último. Assim, cito, na estrutura íntima do processo religioso, "não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não-crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo comum".
3. A fé na ressurreição de Jesus é central no cristianismo. Mas ela não é a reanimação do cadáver, nem pode ser constatável pelos historiadores. Ela é real, mas não é um facto da história empírica. Se o fosse, seria constatável empiricamente e não era precisa a fé, nem seria ressurreição.
Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no "Deus que ressuscita os mortos" e que tinham acreditado em Jesus continuaram a crer n'Ele, após a sua morte, uma morte que testemunhava o que foi o centro da sua mensagem por palavras e obras: que Deus é amor. Mais uma vez, reflectindo, aprofundaram a convicção avassaladora de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, que é a vida plena e eternal. E disso deram testemunho até à morte.
4. "Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode, ou pode, mas não quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se pode e quer, donde vem o mal real e por que é que não o elimina?"
Quando se considera este famoso dilema de Epicuro, é preciso ser consequente. De facto, não é legítimo invocar o mistério de modo cego, pois não pode ir contra a razão. Que diríamos de alguém que, podendo aliviar as dores de outra pessoa, o não fizesse? Não seria um sádico?
Assim, ou há alguma falha no dilema ou só resta a alternativa do ateísmo. O que falha é o pressuposto de que é possível um mundo perfeito. Ora, um mundo finito perfeito não é possível, pois é contraditório. Um mundo finito "não pode existir sem que no seu funcionamento e realização apareça também o mal".
Mas então ergue-se a pergunta: como pode Deus dar-nos a salvação plena que esperamos após a morte, se continuaremos finitos e a finitude é que torna inevitável a existência do mal? Este mundo é finito, mas perfectível... O tempo pertence à estrutura do ser finito. O crente é aquele que espera — e o ser humano é constitutivamente esperante —, após o tempo do crescimento e da maturação na história, a salvação plena por dom gratuito do Deus. Então, já para lá dos limites da História, "não se pode afirmar que seja contraditório que, ao intensificar-se a presença criadora fora dos limites do espaço e do tempo, a criatura participe, de algum modo, com tal força na infinitude divina, que resulte livre do mal", conclui Andrés Torres Queiruga.
Anselmo Borges no DN
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia