Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
A experiência mais profunda e autêntica de Deus, aquela que não engana, é a do amor. Essa foi a revolução de Jesus de Nazaré.
Eis uma daquelas perguntas que voltam sempre de novo. E não faltam as profecias a anunciar o fim da religião. No entanto, a profecia está longe de ver a sua confirmação. Neste tempo de ateísmo, pelo menos 85% da Humanidade continua a afirmar-se religiosa A religiosidade é uma dimensão profunda e constitutiva do Homem, como a música, a estética, a ética...
No longo processo da hominização, quando se deu o salto para a humanidade, apareceu no mundo uma forma de vida inquieta que leva consigo constitutivamente a pergunta pelo sentido último e total e a sua busca. Precisamente esta questão é a raiz do dinamismo cultural e religioso. E o que mostra a história das religiões é que não bastam as realizações culturais como resposta à totalidade da questão do sentido, pois também elas são contingentes e minadas pelo efémero e mortal. Por isso, desde o início, a resposta do "verdadeiramente positivo" é vista em forças supra-humanas, mais tarde, em deuses e Deus. Trata-se sempre de "objectivações" que transcendem o mundo empírico e a história dada. O que constitui a religião, como escreveu Karl-Heinz Ohlig, é a experiência de contingência, a abertura ao sentido e a correspondente esperança num Sentido "transcendente".
A ideia de que é possível varrer do mundo o incognoscível, o mistério e a transcendência pela ciência não se confirma de modo nenhum. De facto, há o incognoscível, o mistério último. Evidentemente, o cientista tem de partir da vontade de procurar explicações, razões e causas cada vez mais abrangentes e finalmente completas dos fenómenos. No entanto, como escreveu o filósofo Luc Ferry, se esta vontade é legítima, por outro lado, se a tomarmos como "princípio ontológico absoluto", será sempre de certo modo votada ao fracasso. De facto, nenhuma explicação científica poderá alguma vez encontrar uma "causalidade última", porque, nesse processo explicativo, ou pára-se de modo arbitrário na busca das causas, tornando-se a explicação incompleta, ou pretende-se descobrir uma "causa primeira", caindo na metafísica e abandonando a racionalidade empírico-científica. "Na ciência, não existem senão explicações limitadas de fenómenos eles mesmos limitados."
Precisamente desta abertura para o incognoscível e para o mistério erguer-se-á sempre a pergunta por Deus, e esta pergunta infinita é que dá ao Homem aquela dignidade e aquela seriedade das quais a nossa sociedade de banalidade raquítica parece estar cada vez mais distanciada, absorvida como anda na logomaquia sofista e ridícula e no consumo sofisticado e pedante.
Claro que Deus não é demonstrável - Deus só pode ser "esperado" como Sentido último e transcendente para todas as esperanças. No entanto, mesmo quando se considera os "mestres da suspeita" e os críticos da religião na modernidade, talvez só de Freud se possa dizer que, ao pressupor uma aceitação desiludida da realidade, aceitou como possível uma vida sem religião. Os outros, na sua aparente contundência crítica, não deixam de manifestar alguma reserva quanto à iminência do fim da religião - por exemplo, o "louco" de Nietzsche confessa que a sua notícia da "morte de Deus" ainda está a caminho - e abrem perspectivas globais de esperança quase religiosa, não se contentando, portanto, com o mundo fenoménico: Comte falou da "religião da Humanidade", o marxismo apontou para a utopia de uma sociedade reconciliada, Nietzsche para a perspectiva de um Super-Homem futuro, Ernst Bloch para o Reino de Deus sem Deus. Mesmo Freud escreveu numa carta a J. J. Putnam, em 1915: "Quando me pergunto porque é que sempre procurei com seriedade ser solícito e, quanto possível, bondoso com os outros e porque é que não o deixei de fazer quando verifiquei que se é prejudicado por isso e massacrado, pois os outros são brutos e infiéis, não conheço qualquer resposta."
"O potencial de angústia e de experiências negativas parece ser tão grande e o dinamismo da esperança de Sentido tão forte" que "haverá sempre religião", concluía o teólogo Karl-Heinz Ohlig, especialista em história e ciências das religiões. O que se passa é que agora as religiões já não podem ignorar a razão crítica e, por outro lado, a cultura e a religião já não se identificam, de tal modo que, nas sociedades pluralistas, as religiões já não são normativas para todos os domínios da realidade, que se tornaram autónomos. Mas, precisamente por isso, ficam libertas para o que é o domínio específico da sua competência - a questão do Sentido. Ora, este domínio "parece afectar de modo tão central a vida humana que até agora não se pode afirmar um fim da religião nem é de esperar para o futuro".
Face à questão de Deus, a situação da razão é paradoxal. Por um lado, parece constitutiva a sua referência a Deus: não é próprio do ser humano ter de colocar a questão do Fundamento último, a questão do Sentido último enquanto Sentido de todos os sentidos, e não está Deus co-implicado na experiência do limite, portanto, paradoxalmente também nas experiências do mal, da morte e das vítimas da História? Por outro, a razão não pode demonstrar Deus, já que essa demonstração implicaria que Ele é menos do que ela: o Deus demonstrável é um ídolo.
Deus é dado essencialmente numa experiência de fé, de entrega confiada, que pode e deve ser articulada racionalmente. Então, a experiência mais profunda e autêntica de Deus, aquela que não engana, é a do amor. Essa foi a revolução de Jesus de Nazaré.
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia