no Diário de Notícias
Quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal decisivo de desumanização e alienação. A ocultação da morte anda vinculada ao profundo mal-estar provocado pelo vazio de uma existência sem sentido.
Há aquele conto persa sobre o jardineiro e a morte: "O jardineiro de um príncipe persa correu para o seu senhor, dizendo: "Senhor, acabo de ver a morte no pátio, e ameaçou-me. Empresta-me um cavalo, para poder fugir depressa para Ispaão; deste modo, a morte não me alcançará." O senhor satisfez o desejo do seu jardineiro, que imediatamente cavalgou para Ispaão. Pouco depois, também o príncipe encontrou a morte, e perguntou-lhe: "Porque é que ameaçaste o meu jardineiro?" A morte respondeu: "Eu não o ameacei. Apenas olhei para ele atónita, pois hoje à noite tenho de ir buscá-lo a Ispaão.""
Aí está um conto cru, que tem muitas versões, mas essencial. Passamos a vida a fugir da morte, ela, porém, está sempre lá. À nossa espera. Em qualquer parte. Não sabemos onde. Nem quando. Nem como. Mas é inútil tentar esquecê-la, pois ela não vai esquecer-se de nós.
E. Cioran, o filósofo da desesperança, escreveu: "Há meses, encontrei uma senhora e falámos de um conhecido comum, alguém que eu já não via há muito tempo. Ela disse que era melhor não voltar a vê-lo, pois ele estava muito infeliz. Não pensava noutra coisa senão na morte. Respondi-lhe: "Em que é que quer que pense?" Em última análise, não há outro assunto."
O pensamento da morte tem o condão de ao mesmo tempo nos libertar e nos paralisar. Perante a morte, ficamos neutralizados: tudo é vão e inútil. Ou fugimos para a frente: comamos e bebamos, pois amanhã morreremos. Ou então despertamos finalmente para a liberdade: a consciência da morte faz-nos radicalmente livres, e tornamo-nos nós.
A morte é implacável. Com ela, não há negociação possível. Mais tarde ou mais cedo, ela sai vencedora. Mas precisamente aqui reside o seu nó todo de enigma: ela é a evidência bruta que anula, e, por outro lado, ergue-se, irredutível, a pergunta: como é que uma consciência pode morrer? A minha consciência morta é a contradição. Por isso, através deste enigma, as culturas não são senão tentativas de abertura de caminhos de sentido, na busca de um Sentido último, final.
Talvez não seja mau reflectir sobre a crise das nossas sociedades científico-técnicas que tem o seu vértice no tabu da morte. Vivemos numa sociedade que nos arrasa com conhecimentos, mas que não nos ensina o essencial: a sabedoria de viver na consciência da mortalidade. Essa consciência talvez possa despertar-nos para o que é nuclear e fundamental: somos mortais; logo, somos irmãos. E é a morte que obriga a distinguir entre o que verdadeiramente vale e tudo o resto.
É um lugar-comum: o reconhecimento de que nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo, a morte se tornou tabu. Disso, pura e simplesmente, não se fala. Fazê-lo é quase obsceno, embora se admita que o mundo dos mortos invada o mundo dos vivos um ou dois dias por ano - 1 e 2 de Novembro, os dias dos Finados, amanhã e depois. As nossas sociedades são as primeiras na história a colocar o seu fundamento sobre a negação da morte.
De facto, como é que uma sociedade que gira à volta da organização socioeconómica, determinada pelo individualismo concorrencial feroz, onde os valores são ter, poder, prazer, êxito, parecer e aparecer, eficácia, lucro, acumulação de bens materiais, progresso, riqueza, pode ainda acompanhar afectivamente os doentes, os velhos, os moribundos, e suportar o supremo fracasso da morte? Uma sociedade sem Eternidade tem de ignorar a morte. Neste tipo de mundo, a morte é o não integrável, e o nosso dever é não pensar nela.
Mas não se julgue que se deixou de pensar na morte por ela já não constituir problema. É exactamente o contrário que se passa: de tal modo a morte é problema, o problema para o qual uma sociedade que se considera omnipotente não tem solução, que só resta a solução de ignorá-la, ocultá-la, reprimi-la. Aquilo que provoca dor infinda e para que não há solução é recalcado. Por isso, se a experiência de solidão acompanha sempre a morte, nas nossas sociedades essa solidão pode atingir o paroxismo do intolerável.
É certo que talvez nunca como hoje a morte foi objecto de estudos científicos, desde a medicina à sociologia, à psicologia e à história, que nos permitem compreender, por exemplo, que as atitudes face à morte variam segundo os tempos e as sociedades. Proliferam os colóquios e as conferências e os especialistas da morte. Mas não se aninha aí precisamente o perigo de uma estratégia para evitar o pensamento da minha morte? Quer dizer, essa é ainda uma forma paradoxal de confirmar o tabu: falar da morte em abstracto e academicamente pode ser um meio de iludir a minha própria morte.
Ora, é evidente que é necessário excluir todas as atitudes mórbidas face à morte. Até porque o medo da morte foi utilizado até pela Igreja como verdadeiro exercício de terrorismo sobre as consciências, para uso do poder. Mas é igualmente verdade que, quando uma sociedade nada tem a dizer sobre a morte, é porque, em última análise, nada tem a dizer sobre a existência autenticamente humana. Quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal decisivo de desumanização e alienação. A ocultação da morte anda vinculada ao profundo mal-estar provocado pelo vazio de uma existência sem sentido.
O pensamento da morte não pode servir para envenenar a vida. Pelo contrário. O saber da morte própria confronta-nos com os limites e o que se deve fazer no tempo que há. Sem ilusões.
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia