domingo, 19 de setembro de 2021

O importante são as pontes

Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO


Perceber os sinais que Deus nos faz, na nossa história, é tarefa de toda a Igreja, sabendo que Deus não está confinado pelas nossas convenções: é o Deus das surpresas. É-nos pedido que não sejamos nem cegos nem surdos perante tudo o que acontece na história humana.

1. O pessimismo não é realista porque não abre caminhos para o futuro. Paralisa. O princípio-esperança, pelo contrário, incita à luta mesmo quando as dificuldades parecem invencíveis.
No século XIX, parecia que a Igreja Católica rompia oficialmente com o mundo moderno. No século XX, alguns movimentos católicos recusaram esse destino. Tudo fizeram, lutando contra muitos obstáculos, por vezes, criados pela própria Hierarquia, para abrir portas e janelas de diálogo com esse mundo turbulento e ensanguentado por duas guerras mundiais. Foi, no entanto, João XXIII – de uma forma inesperada – que convocou um concílio para que esse esforço não fosse, apenas, de alguns movimentos e de algumas personalidades. Como disse Eduardo Lourenço, em 2011, nas célebres Conferências de Maio do CRC, “é preciso ver que este concílio foi pensado e imaginado por alguém que merecia ser ‘santo súbito’, chamado João XXIII, que teve uma palavra que é de uma novidade absoluta, não em si mesma, porque está no Evangelho, mas na sua tradução histórica propriamente dita, ao dizer esta frase extraordinária: ‘a Igreja não tem inimigos'"[1]. Foi também, de modo muito inesperado, que o Papa Francisco reacendeu o fogo do Vaticano II numa “Igreja marcada por um longo inverno”.
Somos testemunhas de tudo o que ele tem feito, apesar de muitas oposições, para a redescoberta do Evangelho de Cristo como fonte de alegria. Não é por acaso que a sua primeira Exortação Apostólica se chame Evangelii Gaudium (2013) e tenha adoptado, para o seu pontificado, o nome do poeta de Assis, o homem de todas as pontes que fez do céu e da terra a Casa Comum de toda a humanidade.
Agora, um dos grandes empreendimentos do seu pontificado é, sem dúvida, a preparação do Sínodo, marcado para 2023, para que este não seja a repetição dos conhecidos sínodos dos bispos porque não eram, como a própria designação indica, sínodos de toda a Igreja. Ajudavam, pelo contrário, a perpetuar a falsa ideia de que a Igreja católica é, sobretudo, constituída pela Hierarquia, pelo episcopado. O que tem procurado fazer é uma inversão desse caminho, nomeando mulheres e homens, pessoas de todas as Igrejas, de todo o mundo, para que a voz do sínodo seja, à partida, o mais representativa possível do povo cristão que vive as tristezas, as alegrias e as esperanças de toda a humanidade.
Isto pode parecer um processo burocrático: é o Papa que escolhe. Para não ser um processo burocrático, é que o Papa Francisco se desloca para ver, sentir, escutar as questões reais da sociedade e da Igreja, como acaba de fazer, na sua deslocação a Budapeste (Hungria) e à Eslováquia. Viu, ouviu e interpelou os bispos e encontrou-se com todos e, sobretudo, com a periferia das periferias: a comunidade cigana, cujo discurso – uma espécie de manifesto – importa meditar também em Portugal, neste tempo de eleições.

2. O próprio título do Documento Preparatório exprime o que se pretende obter e que nos falta: uma Igreja sinodal, isto é, uma comunhão de todas as igrejas, nas suas diferenças, com a participação de todos, numa missão que deve ser vivida como responsabilidade de todos.
O que importa é descobrir os caminhos para que isso aconteça, segundo as características de cada tempo e lugar: “O caminho sinodal desenvolve-se num contexto histórico, marcado por mudanças epocais na sociedade e por uma passagem crucial na vida da Igreja, que não é possível ignorar: é nas dobras da complexidade deste contexto, nas suas tensões e contradições, que somos chamados ‘a investigar os sinais dos tempos e a interpretá-los à luz do Evangelho’ (GS, n. 4)”.
À partida, isto parece um desígnio impossível de realizar, mas do qual não se pode prescindir. Conseguir um sínodo, a partir da representação das bases de toda a Igreja de todos os continentes, não é uma megalomania de alguém que não desiste de nada. É o verdadeiro realismo eclesial que não prescinde das aventuras do Espírito Santo que, segundo o testemunho dos Actos dos Apóstolos, faz acontecer o imprevisível. O que está programado é para ser realizado em dois anos, mas sobretudo, para criar um novo estilo de viver a criatividade, que está aprisionada por costumes e leis que pretendem ser a garantia de fidelidade à tradição. De facto, esquecem a grande Tradição da criatividade, do Espírito que sopra onde quer e quando quer sem se escravizar na letra que mata.
O grande adversário do acontecimento sinodal seria o de pensar que é apenas um acontecimento e pronto. Como escrevia o dominicano, Marie-Dominque Chenu, o importante é perceber que o Evangelho se vive no tempo deste mundo contraditório, onde nos salvamos ou nos perdemos. Foi ele que mais desenvolveu a teologia dos sinais dos tempos. Ora, perceber os sinais que Deus nos faz, na nossa história, é tarefa de toda a Igreja, sabendo que Deus não está confinado pelas nossas convenções: é o Deus das surpresas. É-nos pedido que não sejamos nem cegos nem surdos perante tudo o que acontece na história humana.

3. No contexto desta crónica, quero referir o gesto da Conferência Episcopal Portuguesa, por ocasião do falecimento do Dr. Jorge Sampaio, prestando-lhe “uma homenagem agradecida pela sua vida plena de humanidade, uma vida dedicada à solidificação da democracia, à defesa dos direitos humanos e ao serviço da causa pública em várias funções autárquicas, nacionais e internacionais, particularmente como Presidente da República de 1996 a 2006”.
Não posso deixar de agradecer as atenções que Jorge Sampaio teve para comigo. Escreveu um longo prefácio para o meu livro, As Religiões e a Cultura da Paz (2001), no qual, faz a história das circunstâncias em que nos conhecemos e reconhecemos, desde a crise académica de 1962. Nunca nos perdemos de vista e nunca houve equívocos entre nós. Como ele próprio escreveu, “ao convidá-lo, recentemente, para integrar a Comissão Política de minha recandidatura, quis prestar-lhe um reconhecimento sincero e, ao mesmo tempo, poder contar com o seu contributo e a sua experiência tão rica e diferente do que é costume encontrar-se nos meios da política. (…) Conhecendo as minhas ideias e as minhas concepções sobre os princípios que devem pautar as relações entre Estado e Igreja, Frei Bento Domingues deu-me a sua colaboração franca. Nunca houve equívocos entre nós. Para mim, o laicismo nunca foi uma anti-religião; a ele, a sua condição de padre jamais o impediu de se assumir como cidadão de corpo inteiro.”
“Percorrendo caminhos diferentes, encontramo-nos na vontade de dar à realização integral e universal da dignidade humana a primeira das missões da política”.
A sua generosidade condecorou-me, em 2004, com o grau de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Cf. Eduardo Lourenço, Concílio – revisitá-lo e pensar o futuro, in Reflexão Cristã (20129, 23-32

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