no PÚBLICO
A falta de cultura bíblica, na formação dos católicos, não se resolve com umas pinceladas de alguns minutos
1. Foi muito saudado o documento do Concílio Vaticano II, chamado A Igreja no Mundo Contemporâneo (Gaudium et Spes — 1965), ao reconhecer que a Igreja faz suas as questões do mundo contemporâneo. Sem perder a memória do passado, deve procurar, afincadamente, abrir caminhos de esperança para o futuro de todos.
O Papa Francisco tem sido fidelíssimo a esta perspectiva. Com ele, a Igreja faz parte do mundo contemporâneo em processo de conversão. Não aceita a miopia de continuar ocupada com um mundo que já não existe. Ainda muito recentemente, no encontro com os jesuítas, na Eslováquia, criticou duramente quem alimenta a ficção de procurar voltar atrás: “Sofremos isso hoje na Igreja: a ideologia do retrocesso. É uma ideologia que coloniza as mentes, é uma forma de colonização ideológica. Não se trata, no entanto, de um problema verdadeiramente universal. É específico das Igrejas de alguns países. Acrescentou com humor: há jovens que, depois de um mês de ordenação, vão pedir ao bispo autorização para celebrar em rito antigo. Este é um fenómeno retrógrado. Temos medo de avançar nas experiências pastorais.”
Questionado acerca da sua saúde, depois da intervenção cirúrgica a que foi submetido, respondeu: “Continuo vivo, embora alguns me quisessem morto. Sei que até houve encontros entre prelados que achavam que a situação do Papa era mais séria do que o que foi dito. Estavam já a preparar o conclave. Paciência!”
Já nos referimos, nestas crónicas, à sua lucidez e coragem, ao romper com o modelo dos sínodos dos bispos, para que o novo sínodo anunciado envolva todas as comunidades católicas, com olhos e ouvidos abertos a outras experiências humanas e religiosas que sejam profundamente significativas.
Continuamos, no entanto, a consentir que a estrutura e o estilo da celebração dominical da Eucaristia ofereçam a imagem de continuarmos teimosamente agarrados a expressões de um mundo cultural que já não incarna as novas linguagens das experiências religiosas e cristãs.
As celebrações dominicais constam de três momentos: a chamada “liturgia da Palavra” (uma leitura do Antigo Testamento, duas do Novo e um salmo), uma Anáfora (na qual se reproduzem as palavras e o gesto da chamada última Ceia de Cristo) e a preparação imediata da Comunhão sacramental.
Dir-se-á que sempre assim foi e sempre assim será, o que não é totalmente exacto. A verdade é que, na fé dos crentes, vive-se a convicção da actuação invisível da graça do Espírito Santo que é sempre nova e não está dependente das nossas mediações. A frequente mediocridade musical torna as celebrações ainda mais desagradáveis e aborrecidas.
2. Quanto à organização da liturgia da Palavra, os textos proclamados nunca são do nosso tempo. Alguns até dizem, “naquele tempo”. Não aparece nenhum texto da actualidade, a não ser na oração dos fiéis que procura informar um Deus, supostamente distraído, das necessidades da comunidade e do mundo.
Supõe-se que fazer a ponte entre aquele tempo e o nosso tempo pertence à homilia, quase sempre reserva do padre, do bispo ou do diácono. Em muitos casos, o engenho, a arte e o saber pode aprofundar as suas questões e lançar pistas para novos modos de viver e testemunhar a condição cristã da vida presente. Mas não faltam as queixas que exprimem a seca, o cansaço daqueles monólogos, dos quais não se aproveita nada.
Parece que não queremos escutar as razões que causam a debandada de antigos praticantes e a ausência das novas gerações, apesar dos numerosos inquéritos que já foram feitos. Levanto esta questão em espírito sinodal, embora continue muito agradecido pela reforma litúrgica feita no Vaticano II. Não deveria fazer parte do programa do sínodo, sobretudo nas Igrejas europeias, analisar a situação actual e procurar remédios novos que façam da celebração da Eucaristia uma alegria que se renova semana a semana?
Longe de mim a ideia de suprimir da liturgia os textos bíblicos, mas não é numa homilia que se consegue vencer a ignorância. A falta de cultura bíblica, na formação dos católicos, não se resolve com umas pinceladas de alguns minutos. Isto não quer dizer que não haja algumas selecções extremamente significativas. Por exemplo, neste Domingo, podemos ver referências, tanto do Antigo como do Novo Testamentos, a desafiar a nossa situação eclesial. As instituições religiosas são inevitáveis. É antiga a tensão entre a espontaneidade religiosa e as instituições criadas para a favorecer, amparar e desenvolver. Não se pode confiar na improvisação das suas manifestações. As instituições são indispensáveis à vida dos seres humanos em sociedade.
3. Neste Domingo, as leituras do Antigo e do Novo Testamentos são exemplares acerca do que sempre acontece, quando o discípulo quer ser mais rigoroso e exigente do que o mestre, para manter a coesão do grupo dos escolhidos e as condições para o exercício correcto das suas competências. No caso, era preciso mostrar que não é em todas as circunstâncias que um profeta pode exercer o seu carisma. O Espírito Santo, o Espírito de profecia, de clarividência na orientação do grupo religioso, não deveria fazer o que lhe apetece. Teria de seguir as regras estabelecidas. Nunca faltam os zeladores rigoristas, de espírito inquisitorial, para denunciar ao chefe a desordem que está a minar a sua autoridade. Acontece que Moisés e Jesus de Nazaré — os maiores profetas — não tinham esse pendão mesquinho: “Tens ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor profetizasse, que o Senhor enviasse o seu espírito sobre todos!”; “Não o proibais; quem não é contra nós é por nós” [1].
Hoje, na Igreja continua-se com a mentalidade de Pio X: “Esta sociedade [a Igreja] é essencialmente desigual, quer dizer, uma sociedade composta por distintas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho, os que têm um posto nos diferentes graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E as categorias são de tal modo distintas umas das outras, que só na pastoral residem a autoridade e o direito necessários para mover e dirigir os membros para o fim dessa sociedade, enquanto a multidão não tem outro dever senão deixar-se conduzir e, como dócil rebanho, seguir os seus pastores” [2].
Esta voz esqueceu tanto o desejo de Moisés — quem me dera que fossem todos profetas — como a declaração do NT sobre o baptismo, segundo a qual todos na nossa diversidade “somos um só em Cristo, pois não há judeu nem grego, não há escravo e livre, não há homem e mulher” [3]. Como escreveu S. Pedro, todos somos sacerdotes, reis e profetas [4].
Importa perder o medo de inovar, de avançar, pois é urgente ouvir, ver, sentir e entender o mundo contemporâneo, para anunciar que há razões de esperança. Não à ideologia do retrocesso!
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
26. Setembro. 2021
[1] Nm 11, 25-29; Mc 9,38-48
[2] Pio X, Vehmenter Nos, 1906 (n.º 22) [3] Gal 3, 27-28
[4] 1Pd 2, 4-10