1. Eu sei que o tema é hoje muito sensível e complexo. Já aqui escrevi várias vezes sobre ele, mas volto a ele, sobretudo porque penso que é fundamental ter conceitos claros, contra a confusão que quer impor-se neste e noutros domínios. Dentro da confusão, é fácil perder-se quanto ao essencial.
Dou exemplos de confusionismo. Contou-me uma pessoa amiga que, durante uma volta a pé, ouviu uma senhora aflita a chamar: “Anda à mãe, anda à mãe.” Até se afligiu, pensando que uma criança se tinha perdido. Afinal, era um cãozinho. Outra pessoa contou-me que viu na televisão uma senhora grávida num supermercado com o cãozito num carrinho e, à pergunta para quando o nascimento do bebé, disse a data prevista na qual o cão iria ter um irmão. Segundo o Expresso, André Silva declarou: “Há mais características humanas num chimpanzé ou num cão do que numa pessoa em coma”. E já se pede um SNS para cães e gatos. E há jardins públicos infrequentáveis por crianças, tanta é a porcaria largada por cães, com os donos regalados a observar o alívio dos bichos. E tem havido ataques graves de cães e perturbações sem conta por outros animais que destroem colheitas inteiras, mas nada acontece...
A afirmação acima está na continuidade da de Peter Singer, professor da Universidade de Princeton, que escreveu em Ética Prática: “Devemos rejeitar a doutrina que coloca a vida dos membros da nossa espécie acima da vida dos membros de outras espécies. Alguns membros de outras espécies são pessoas; alguns membros da nossa não o são. De modo que matar um chimpanzé, por exemplo, é pior do que matar um ser humano que, devido a uma deficiência mental congénita, não é capaz nem pode vir a ser pessoa.” Quem faz estas afirmações fá-lo baseado em que a desigualdade de tratamento que damos às pessoas humanas e aos outros animais deriva do chamado especismo, que consiste na preferência que damos aos seres humanos sem qualquer outra razão que não a pertença a uma espécie, no caso, a espécie humana.
2. Oponho-me veementemente a esta tese, que é a tese animalista, uma das teses mais deletérias e ameaçadoras contra o humanismo. E estou à-vontade, por várias razões. Na universidade, sempre falei aos estudantes da Animal Liberation (Libertação animal), de Peter Singer, e há muito que defendi que se deveria encontrar, do ponto de vista jurídico, uma denominação para os animais, que não são coisas. Aliás, isso encontra-se também num livro que coordenei juntamente com Alexandre Manuel, Desafios à Igreja de Bento XVI, no qual o constitucionalista J. Gomes Canotilho perguntava se precisamente um desses desafios não era desenvolver uma ecologia em que “as diferenças entre ‘algo e alguém’ não remetam para o domínio das coisas a problemática humana dos outros seres vivos da Terra.” E sempre fui a favor do valor da vida, do cuidado a dar à Criação e de que aos animais é devido tratamento adequado, recusando sofrimentos cruéis e inúteis.
Para mim, de qualquer forma, há uma distinção entre a pessoa humana e os outros animais — e quando se fala em animais, é preciso distinguir entre animais e animais: não é a mesma coisa falar de cães e gatos e falar de pulgas, piolhos, carraças, percevejos, vespa asiática... e, por outros motivos, de leões, tigres, crocodilos, hipopótamos...—, distinção que é não só de grau ou quantitativa, mas essencial, qualitativa, ontológica. Bastará estar atento às diferenças, de que dou apenas exemplos. Neste tema como noutros, o problema é o fundamentalismo e a falta de racionalidade.
Como escreveu Edgar Morin, “embora muito próximo dos chamados chimpanzés e gorilas, tendo 98% de genes idênticos, o ser humano traz uma novidade à animalidade”. Há, apesar de tudo, entre etólogos e antropólogos, convergência bastante no reconhecimento de que entre o animal e o homem se deu um salto qualitativo essencial. Esse salto manifesta-se, em termos gerais, na autoconsciência (consciência de que se é consciente), na autoposse de si mesmo como único e centro de identidade, na linguagem simbólica e reflexiva, na capacidade de abstrair e formar conceitos, na transcendência em relação ao espaço e ao tempo, na criação e assunção de valores éticos e estéticos, no pré-saber da morte própria vinculada às crenças religiosas e à angústia frente ao nada, na pergunta pelo ser e pelo seu ser...
O homem não se encontra na simples continuidade da vida no sentido biológico. Como escreveu Max Scheler, o homem é “o asceta da vida”, pois é capaz de dizer não aos impulsos instintivos, vendo aí o célebre biólogo F. J. Ayala “a base biológica da conduta moral da espécie humana, nota essencialmente específica dela”. Porque é capaz de renunciar, abster-se, deliberar, optar, o homem é um animal livre e moral.
Os outros animais também comunicam, mas o homem tem linguagem duplamente articulada. Aristóteles viu bem, ao definir o homem como animal que tem lógos (razão e linguagem), e, assim, político: “Só o homem, entre os animais, possui fala. A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos frente aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a pólis.”
O Pensador, de Rodin, diz-nos bem o que é o ensimesmamento: entrada dentro de si próprio, descida à sua intimidade única, à subjectividade pessoal: o ser humano vem a si mesmo como único, tem a experiência de eu enquanto própria e exclusiva, face ao outro, que é outro eu, outro como eu, mas simultaneamente um eu que não sou eu: um eu outro impenetrável. Disse o famoso psicanalista Jacques Lacan: “Possuir um Eu na sua representação: este poder eleva o homem infinitamente acima de todos os outros seres vivos sobre a Terra. Por isso, é uma pessoa”. Sabe que sabe, é autoconsciente, consciente de ser consciente.
O homem é um ser inquieto, nunca satisfeito (satis-factus: feito suficientemente), acabado. Por isso, é o ser do transcendimento, como escreveu Pascal, ao dizer que o homem mora algures entre “le néant et l’infini” (o nada e o infinito), aberto ao Infinito, à Transcendência. É o ser da pergunta e, de pergunta em pergunta, chega a perguntar ao infinito pelo Infinito, isto é, por Deus. Neste sentido, é constitutivamente metafísico e religioso. E tem dignidade, é fim e não meio, como defendeu Immanuel Kant, pois há nele algo de infinito, precisamente esta sua capacidade e necessidade de perguntar pelo Infinito, pelo Fundamento e pelo Sentido último.
E há o riso e o sorriso, a contemplação e a criação de beleza (quando é que um animal vai compor uma sinfonia?), o amor de autodoação, erguer edifícios jurídicos com o estabelecimento da lei e da igualdade de todos perante a lei, a sepultura, a esperança...
E, no final de tudo, se estas notas características e capacidades específicas e outras não convencessem, há uma que é definitiva: nesta questão de saber se a distinção entre os humanos e os outros animais é meramente de grau ou, pelo contrário, qualitativa, essencial, quem é convocado é o homem. É ele e só ele que debate. Alguém se lembra de convocar uma assembleia de outros animais para dirimir a questão?
É preciso tomar consciência do perigo da indiferenciação e da ameaça da animalização da sociedade.
3. Há uma pergunta inevitável. E os membros da nossa espécie que não podem de facto exercer essas capacidades, como os deficientes mentais profundos? Estou com a filósofa Adela Cortina: “Isso não os torna membros de outras espécies, mas pessoas que é preciso ajudar para poderem viver ao máximo essas capacidades, o que só conseguirão numa comunidade humana que cuide deles e os promova na medida do possível.”
Anselmo Borges no DN
Padre e professor de Filosofia