«Esta coexistência pacífica está a ser activada para alargar e aprofundar a qualidade espiritual das religiões e as suas responsabilidades sociais ou é sinal de crescente indiferença?»
1. O panorama dos estudos sobre a religião na sociedade portuguesa continua a enriquecer-se. Segundo um Inquérito recente , o pluralismo religioso, no território português, está a concentrar-se na Área Metropolitana de Lisboa. Nasce a pergunta: este pluralismo é vivido como diálogo que vai alterando e fecundando os comportamentos de cada grupo ou limita-se a garantir que possam coexistir de forma tolerante ou até indiferente?
A liberdade religiosa está legalmente garantida em Portugal. Segundo um Relatório de 2018, não se registaram casos significativos de discriminação por razões religiosas ou abusos de liberdade religiosa que possam ser imputáveis ao Estado ou a outras entidades, nem se perspectivam, num horizonte temporal próximo, tensões sociais, económicas ou políticas que façam prever uma alteração desta situação.
Importa robustecer este clima porque, hoje, tudo é muito frágil. Mas persiste a pergunta: esta coexistência pacífica está a ser activada para alargar e aprofundar a qualidade espiritual das religiões e as suas responsabilidades sociais ou é sinal de crescente indiferença?
Não se pode confundir o diálogo inter-religioso com uma passagem de modelos na qual cada um exibe a sua imagem convencional retocada para ficar bem na fotografia. Sabemos que um confronto é amistoso e crítico quando cada grupo reconhece com verdade: em relação ao passado, nós mudamos muito e vós também.
Com isto não se pretende a abolição das identidades dos diversos movimentos e instituições, desenhadas pela história de fidelidades, inovações e traições, de verdadeiras e falsas reformas . As religiões são construções simbólicas, rituais e organizativas do ser humano, sem garantias de infalibilidade, para configurar o sentido da vida e alimentar a esperança nos bons e nos momentos em que tudo parece perdido.
Como dizia Frei José Augusto Mourão, a era das definições unívocas de religião acabou. Prevalece uma concepção liberal que vai obrigar a que se aceite conviver segundo a ideia de que não há uma saturação do espaço da verdade. O espaço da verdade partilha-se. Há posições, há valores que diferem de religião para religião, de grupo para grupo, de instituição para instituição. Desde que isso não colida com o inegociável, com o indisponível, é possível às pessoas conviverem em paz, sem guerras de religião.
O mito de Babel era a ideia concentracionária de uma única língua, da abolição das diferenças. Era a violência de uma única linguagem. O simbólico derrube da Torre aponta para um valor que nos há-de congregar: se não chegarmos ao diálogo, que cheguemos, no mínimo, à negociação das diferenças.
2. Mesmo sem uma definição unívoca de religião, há quem não goste de abrigar o fenómeno cristão sob esse nome. Eduardo Lourenço, por exemplo, tem observações pertinentes acerca deste ponto: «É mais do que discutível que o cristianismo seja uma mística, embora haja, naturalmente, uma mística cristã. É mesmo mais do que discutível que o cristianismo seja uma religião, no sentido antigo e clássico do termo ciceroniano de religare, embora fosse esse o que, exceptuando o horizonte da teologia negativa, se impôs culturalmente».
Explica porquê: «A religio, segundo Cícero, denota a dependência, o laço que ata o homem a Deus. Mas de algum modo esse laço não ata menos Deus ao homem. O cristianismo está aquém ou além desta mútua interdependência. O nome de “Pai”, dado a Deus, não é uma mera antropologização destinada a nomear o que não tem nem pode ter nome – como se fosse “criado” pela nossa nomeação –, mas a pura metáfora do sentimento de pura gratuidade que é a essência do laço que não nos ata a Deus – e muito menos Deus a nós –, mas nos desata de todo o império da necessidade. Deus não é a nossa “propriedade” nem nós a de Deus».
3. O filósofo espanhol, José Antonio Marina, escreveu um ensaio desafiado por outro de sinal contrário, o de Bertrand Russell. Não cabe nesta crónica a discussão que merece. Defende que a religião é a experiência que acompanhou, desde o princípio, a irrupção da criatividade do mundo. O despertar da inteligência humana aconteceu quando um animal peludo bípede compreendeu um signo: o visto converteu-se em símbolo do não visto. Foi, porém, com Jesus que este filósofo percebeu que, apesar de todos os horrores na história humana, o amor de pura generosidade, de pura gratuidade (agapé), acabará por vencer. Confessa que é uma posição individual, optimista e megalómana, mas se Jesus tem razão, «vai ser possível o meu grande sonho: transformar, em todos os registos da nossa vida, o esforço em graça, em agapé». Se o ser humano é um animal simbólico – vendo o que não vê, trazendo para perto o que está longe - a sua fé desafia, mas não contradiz, a razão. Tem olhos e coração que a razão desconhece.
O Cristianismo, nas suas múltiplas expressões, nas suas realizações históricas de pura generosidade e de traições sem nome, está ligado a uma realidade histórica incontornável: Jesus de Nazaré. Tendo em conta a sua prática, as suas parábolas, o dom da sua vida pelos mais abandonados e a recusa de todo o poder de dominação, testemunhou que o Deus de quem se fiou em tudo, até no momento mais dramático da sua existência truncada, é abertura universal a todos os seres humanos, de todos os povos, culturas e religiões.
Jesus não tentou fundar uma nova religião. Indicou a Fonte do seu modo novo de viver para os outros, em liberdade e suscitando vidas em processo contínuo de liberação. É nosso contemporâneo.
Nessa Fonte todos podem beber, banhar-se e renascer criaturas novas. Vidas nascidas do puro Amor (Agapé), para que a sua lei seja a graça do Espírito da liberdade, suprema responsabilidade para que todos tenham vida em abundância. Como? Deixou tudo aberto, em todos os âmbitos, à criatividade humana. Com uma condição: que tudo seja feito, com sabedoria, para servir e nunca para dominar. Avisou: o amor do dinheiro é uma idolatria.
Frei Bento Domingues, O.P. no PÚBLICO